quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Sempre em festa, parte III: Dia de Reis


Para os aficionados da época natalícia, o Dia de Reis é o canto do cisne. Doze dias depois da Consoada, gastam-se os últimos cartuchos da quadra, e no dia seguinte é a altura de desmontar a árvore, retirar as decorações, e voltar à vaca fria. Do Natal ficam apenas as contas para pagar. O Dia de Reis assinala a chegada dos três reis magos a Belém para adorar o Menino Jesus - isto, portanto, alegadamente. Para quem acredita piamente neste conto, existem alguns "buracos" no argumento, tal como nos filmes sobre a Idade Média onde um dos actores tem um relógio digital no pulso:

- Assim como não é garantido que Jesus nasceu a 25 de Dezembro, muito menos se consegue comprovar que os seus visitantes chegaram a 6 de Janeiro.

- Vieram do Oriente, alegadamente da Pérsia, e dificilmente chegariam à Palestina em 12 dias de camelo.

- Não eram sequer reis; seriam magos zoroastras, astrónomos, "sábios", como alguns lhes chamam.

Mas isto são "peanuts" para quem quer assinalar a data apenas "porque sim". Na Igreja Ortodoxa, o terceiro ramo do Cristianismo, o Natal assinala-se por volta de 6 de Janeiro, mais dia menos dia. Em Espanha é o dia que se abrem as prendas de Natal, ouvi dizer. Não sei se isto ainda é assim, pois nunca passei o Natal junto de "nuestros hermanos", mas a ser verdade imagino a angústia dos espanholitos enquanto aguardam quase duas semanas para desembrulhar os presentes que lhes piscam o olho debaixo da árvore.

Deste Dia dos Reis recordo-me da minha avó materna cortar a coroa das romãs, para "dar sorte", e guardava-as numa gaveta da cozinha. Não só as coroas não davam sorte alguma, como duas ou três semanas depois ficavam secas, e a minha vó deitava-as fora. Do que não me esqueço mesmo era da forma como a velhinha descascava as romãs, açucarava as sementes e deixava-as de um dia para o outro no frigorífico, tornando-as especialmente sumarentas. Nunca consegui fazer igual. Já invoquei o seu fantasma para me explicar o segredo, mas sempre sem sucesso.

Com os meus avós paternos desparecidos quando tinha apenas 10 anos, era hábito passar o Dia de Reis com os sogros do meu pai, a família da minha madrasta. Quem diz "Dia de Reis" quer dizer "noite", pois o dia 6 de Janeiro não é feriado, e caso não caia num fim-de-semana, é um dia de trabalho ou de escola como outro qualquer. Eu e o meu irmão éramos as únicas crianças, e a minha irmã era ainda bebé, pelo que a festa era sobretudo dos mais velhos. A mãe da minha madrasta, a Tia Emília, e o seu marido, o Ti Chico, eram pessoas humildes, de origem rural, e tinham pouca ou nenhuma sensibilidade para corresponder às modernices da malta nova.

À mesa da casa da Tia Emília e do Ti Chico tinhamos castanhas cozidas com erva doce, fatias paridas, vinho do porto, aniz escarchado, jeropiga, vinho tinto carrascão, e sumo de pacote da Dawa para os miúdos - aqueles instantâeos que custavam 15 escudos cada, e que sabiam todos à mesma coisa, fosse o aroma pêssego, ananás ou morango. O que nunca podia faltar era o Bolo Rei, o símbolo da festividade por excelência. O Bolo Rei, de que já falei neste post tem uma particularidade engraçada. Uma família de 20 pode encomendar um bolo rei, e acaba sempre por sobrar. Porquê? Simples: quase ninguém gosta de bolo rei. A massa é seca, e mesmo os que não que se importam com isso, esbarram nas frutas cristalizadas ou nas passas.

Mas há bolo rei, e há bolo rei. Passo a explicar. Existe um bolo rei corrente, aquele que encontramos à mesa das famílias médias, e um outro XPTO, mais caro, assinado por um qualquer pasteleiro da moda. Assim como em tudo na vida, quer nas pessoas, nos bairros, no urânio, na cachupa ou nos palhaços, também no bolo-rei há um rico, e um pobre. Eis as diferenças:

O bolo rei rafeiro é duro, seco, frutas cristalizadas de segunda categoria no topo, como cascas de laranja e outras não identificadas coloridas artificialmente, salpicado com açúcar refinado, e no interior vestígios de nozes, menos pinhões, passas a rodos e quadrados de outras frutas cristalizadas rasteiras.

O bolo rei de cinco estrelas tem uma massa fofa, com um travo amendoado a massa-pão, repleto de pinhões e nozes, com frutas cristalizadas de primeira, como abóbora, mandarina e figo, ocasionalmente caramelizadas, e salpicada de "icing-sugar".

Depois do bolo rei, do vinho do porto, das castanhas cozidas com aniz e tudo mais, é tempo de voltar para casa, e no dia seguinte encarar o resto do ano sem aquela aura natalícia de paz, amor e compaixão. Mas os foliões não desesperam, pois o Carbaval está à porta. E é esse o tema do próximo capítulo desta rubrica.



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