domingo, 17 de novembro de 2013
Quem somos, realmente? Parte XXV: a morte
O que mais nos chateia da morte é que não sabemos nada dela. Não sabemos se dói, o que acontece depois, se aquilo que passámos a vida inteira a acreditar é realmente verdade, e pior do que isso, se nos vai ser dada a oportunidade de saber! Quem é crente na vida além da morte, no Paraíso, na reencarnação ou todas essas versões da teimosia em não aceitar que chegamos eventualmente ao fim, tem algo em que se agarrar na hora de encarar o destino. Os mais pragmáticos encaram-na como “a mesma coisa que havia antes da vida”. E assim até custa menos a engolir. Se não nos lembramos de como era antes de termos nascido, é melhor também que não tenhamos consciência do que é estar morto.
Há casos de pessoas que estiveram clinicamente mortas durante minutos ou horas, que recuperam as funções vitais e falam do que viram enquanto estiveram “do outro lado”. Dizem mil e uma coisas, mas uma boa parte deles fala de um “túnel”, e de uma “luz” que viram ao fundo desse túnel. É estranho, no mínimo. Falem-me mais desse túnel. Era natural ou foi construído pelo homem? E a luz, seria o Sol? Ao fundo de um túnel? Ou era uma luz artificial, uma florescente? E já agora, porque é que destas pessoas que viram a luz ao fundo do túnel, nenhuma foi mais além? Tanto entre os que estiveram mortos apenas dez minutos ou mais de três horas há os que falam desta luz e deste túnel, mais nada. Não quero pensar que a eternidade consiste em ficar num túnel a olhar para uma luz. Desconfio que não será preciso esperar pelos primeiros 3000 anos para que fiquemos aborrecidos.
Encaramos a morte como uma derrota. Ninguém gosta de ter a morte à sua volta, e por duas razões essenciais: 1) porque temos consciência de que chegará o nosso dia e 2) porque há alguém que já sabe como é, e por isso sabe mais que nós. Dava imenso jeito se pelo menos um morto que fosse nos surgisse em espírito, holograma, projeção ou que simplesmente nos ligasse para o telemóvel a dizer que a morte não é assim tão má, que iamos gostar, e ainda perguntava se queriamos fazer alguma reserva. Os católicos e os cristãos em geral têm um jeito engraçado de lidar com o desaparecimento de um ente querido. Vivem convencidos de que existe o Céu, uma vida eterna, uma recompensa pela chatice que foi estar vivo, e que vão “para um sítio melhor”. No entanto quando lhes morre alguém que é próximo, choram baba e ranho, arrancam os cabelos, do murros nas paredes e ficam inconsoláveis, em muitos dos casos. Então e o tal “sítio melhor”, meus amigos? Deviam estar a festejar.
A parte mais assustadora de quando sabemos da morte de alguém é saber que o nosso dia também vai chegar. Quando nos encontramos com um amigo ou conhecido que nos diz que fulano ou outrana que sabiamos estarem já doentes morreram, abanamos a cabeça em negação, desviamos o nosso olhar para baixo e na diagonal, fazemos um estalinho com a língua e dizemos “coitado...”. Se ainda na semana anterior tinhamos visto o “de cujus” na rua em posição vertical e na plenitude das suas funções cardio-respiratórias, abrimos os olhos de espanto, como se tivessemos visto um fantasma, e exclamamos “não me digas!”. Em ambas as situações temos uma reação de pesar ou de comiseração, na tentativa de exorcizar a nossa própria fragilidade, a certeza que mais cedo ou mais tarde vamos ter a mesma sorte. Um dia vai ser outro alguém que abana a cabeça e olha para o cão a mijar no passeio ou abre os olhos de espanto quando lhe disserem que morremos.
Uma vez plenamente conscientes de que um dia passamos do prazo de validade e vamos desta para melhor, somos deixados a filosofar de como é ingrato o mecanismo que conduz a vida. O caminho é sempre para a frente, sem lugar a arrependimentos, e não é possível fazer “rewind” para um momento que queríamos que fosse diferente, ou fazer “reset” se achamos que a vida tem corrido mal, e queremos começar de novo. A vida não vem com controlo remoto. Aqui funciona também o princípio do copo meio cheio ou meio vazio. Há quem encare a vida de forma positiva, e cada dia é mais um dia que passa entre os vivos, e há os fatalistas, para quem cada dia é menos um que nos separa da cova. Desde a infância, passando pela juventude, a idade adulta, a meia-idade e finalmente a velhice, não nos passa pela cabeça morrer “de repente”, num acidente, apanhados num fogo cruzado ou acometidos de uma epidemia mortal. Quer o nosso tempo de vida natural seja 70, 80, 90 ou mais anos, morrer antes disso é não cumprir a missão para a qual viemos ao mundo: sobreviver.
Com a excepção das crianças, que não têm a consciência do que é a morte porque ainda não conviveram com ela tempo suficiente, não deve haver um único dia em que não nos passe pelo subconsciente que um dia vamos deixar de ver isto tudo, vamos deixar de estar presentes, e dizer raios e coriscos dos que ficam. O mais frustrante é que não sabemos exactamente quando, pois o tal prazo de validade de que falei em cima não vem imprimido na embalagem com que viemos ao mundo. É uma incerteza que nos assombra. Custa-nos saber que uma pessoa que acabou de perder a vida numa acidente de viação é a mesma com quem estivemos ontem na amena galhofeira. Quem diz com grande à vontade coisas como “sei lá se amanhã estou vivo?” devia assinar um termo de responsabilidade. Para os que chegam a uma idade muito avançada, torna-se frustrante fazer planos. Um velho de 90 anos a quem o neto anuncia que vai casar “daqui a dois anos” recebe a notícia com apreensão, ou se ficar a saber que o seu país vai organizar pela primeira vez um mundial de futebol ou os Jogos Olímpicos daqui a seis ou sete anos, algo com que sempre sonhou, fica apenas moderadamente feliz com a notícia.
Do pouco que sabemos da hora da nossa morte, resta-nos a certeza de que não vamos viver 300 anos, como as tartarugas-gigantes, ou mais de 800, como Matusalém, o patriarca bíblico. Depositamos a nossa confiança nos progressos da ciência no sentido de prolongar a longevidade da nossa espécie, mas temos a certeza que a imortalidade é uma meta impossível – pelo menos para o tempo que nos resta. É curioso ouvir dizer quando morre alguém com 50 e poucos anos que “era tão novo, coitado” (“coitado” é o ponto final que se usa quando se fala da morte de alguém). Na verdade os 50 anos são aquele momento em que temos quase a certeza absoluta que o copo está meio vazio. Vamos supor que alguém que vai morrer aos 80 anos completa hoje 40, o ponto exacto em que atinge metade da sua vida. Viveu exactamente 14610 dias (contando com os dez anos bissextos), 350640 horas, 21038400 minutos, 1262304000 segundos, e resta-lhe outro tanto para viver. Mas esperem lá, agora faltam menos. Eu disse 1262304000 segundos? Queria dizer 1262303940. Esperem, agora são apenas 1262303900. Cada segundo que passa é menos um segundo que o separa do redondo zero, que significa...bem, o melhor é não pensar muito nisso. O melhor mesmo é viver, e depois logo se vê. E posto isto, vamos beber mais um copo.
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