sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Indiferença



Primeiro levaram os comunistas,
Mas não falei, por não ser comunista.
Depois, perseguiram os judeus,
Nada disse então, por não ser judeu,
Em seguida, castigaram os sindicalistas
Decidi não falar, porque não sou sindicalista.
Mais tarde, foi a vez dos católicos,
Também me calei, por ser protestante.
Então, um dia, vieram buscar-me.
Nessa altura, já não restava nenhuma voz,
Que, em meu nome, se fizesse ouvir.

Martin Niemoller

As declarações da deputada Song Pek Kei a propósito dos trabalhadores não-residentes proferidas esta semana durante as LAG para a Economia e Finanças foram carne que chegasse para encher os chouriços da imprensa em língua portuguesa de Macau, e ainda sobrou. Eu próprio não me excluo dessa salsicharia, e é o terceiro "post" que dedico ao tema. No momento em que li as legendas em português daquilo que a deputada disse, vi logo ali que tinhamos material para discutir toda a semana, e quem sabe até depois disso - estou curioso para ver as suas intervenções durante as LAG dos Assuntos Sociais e Cultura. Nasceu uma estrela na AL, uma artista da "gaffe". Cuidado, Fong Chi Keong. A diferença é que esta pode ser perigosa. O tio Fong fala, fala, fala mas a gente não liga. O que Song Pek Kei diz e pensa é preocupante.

Praticamente todos os colunistas meteram a colher nas afirmações da jovem deputada, destacando acima o tudo a contradição que representa ter um discurso xenófobo, sendo ela própria filha de imigrantes de Fujian. Paulo Rêgo escreveu assinou uma peça sobre o assunto no Ponto Final de hoje, e chamava a atenção para esta passagem no mínimo interessante: "Se antes dos seus pais terem cá chegado fosse essa a tese dominante a menina teria de viver Fujian – ou talvez nem tivesse nascido, porque no império do filho único as meninas ocupam o espaço do filho varão".

Isto lembra-me de um episódio que aconteceu comigo há três anos. Tenho uma colega que conheço mal, pois trabalha num departamento situado noutro ponto da cidade, mas do pouco que sei dela é que pretence à comunidade de Fujian, tal como o seu marido, e tem 5 (cinco) filhas, todas meninas, portanto. Esta apetência para a procriação não se deve a nenhum tipo de amor pelos pequeninos, ao ponto de querer uma casa cheia deles, mas porque, e tal como o Paulo referiu e bem, queriam um filho varão. Parece que desistiram depois da quinta tentativa, pois haja anca para aguentar tamanha empreitada, e casa para enfiar tanta criançada.

Um dia durante uma acção de formação conjunta, aconteceu termos ficado no mesmo grupo de trabalho, e nunca tendo havido qualquer contacto entre nós, perguntei-lhe se falava português. Abanou a cabeça indicando que não, e repetiu a acção quando lhe perguntei se falava pelo menos inglês. De seguida perguntou-me em cantonense seu eu falava chinês, e depois de lhe ter tido que falava "muito mal", questionou-me "porque tinha optado em ficar cá se não falava chinês", e recordou-me que "aqui é a China". Sorri, consciente de que via da diplomacia tinha acabado de saltar do 15º andar do edifício onde decorria a formação, e disse-lhe com toda a calma do mundo que "resolvi ficar porque tive essa opção, tal como ela fez a opção de ter cinco filhas, enquanto na China arrancavam-lhe os ovários com um alicate depois de ter a segunda". A expressão de soberba transformou-se subitamente em cara de enterro, e raras são as vezes que a encontro, mas quando isso acontece sinto nos ouvidos o assobio das adagas que atira com o olhar.

Como faço normalmente sempre que há notícias destas, que agitam as águas, pergunto a opinião aos meus colegas chineses. Mais uma vez deu para perceber que a imprensa em língua chinesa ignorou por completo o assunto, e mesmo depois de lhes explicar o que passou, os meus ficaram indiferentes, e até um pouco surpresos com a minha indignação. Já me explicaram vezes sem conta que esta reacção se deve ao desinteresse pela política, especialmente a local, mas isto é algo que vai muito além da politica. Imaginem por instantes que a facção que Song representa chega ao poder, e que leva adiante o seu plano quanto aos não-residentes. E depois? Seguem-se os portugueses e restantes estrangeiros, a seguir os macaenses, e finalmente os "ou mun yan", como os meus colegas. Ou será que pensam que aquela malta de Fujian morre de amores por eles?

Não tenho nada contra a malta de Fujian, entenda-se. Conheço alguns elementos dessa comunidade, pode-se dizer que tenho um ou dois amigos entre eles, e agora o mais curioso, e garanto que isto é verdade, verdadinha, tive uma namorada de Fujian! Só não conheço mais fukinenses porque eles próprios são um tanto ou quanto sectários, talvez pelo facto de serem bastante unidos. Aposto que muitos deles não se revêm nas afirmações da deputada Song, mas infelizmente já tivemos no passado exemplos de sobre de como o Homem se pode transformar em contacto com esse doce veneno que é o poder. Há pessoas que até nem se importam de viver numa ditadura, desde que sejam eles a mandar, claro.

O que Macau é hoje deve à sua História de multiculturidade e tolerância. A maioria da população de etnia chinesa é descendente dos refugiados que procuraram abrigo da ocupação japonesa do continente, e mesmo depois disso o fluxo imigratório prosseguiu, sem que se discriminasse alguém pela sua origem ou estatuto. O próprio Chan Meng Kam não caíu do céu há dias trazido por um tufão. Foi graças a um ambiente de competição justa e respeito pelo indivíduo que o vencedor das últimas eleições chegou onde chegou. O fenómeno politico do momento não chegou a Macau com um BIR no bolso preparado para conquistar o mundo. O que seria dele se quando chegou em 1980 tivessemos uma Song Pek Kei no orgão legislativo de Macau a opôr-se ao seu emprego na carpintaria onde começou a ganhar a vida, em nome de uam defesa bacoca da mão-de-obra local? O que difere um não-residente de um residente como ser humano? E os que foram não-residentes e passam a residentes, devem dar graças por terem chegado a "humanos" e começar a ostracizar os seus antigos camaradas de contrato de trabalho?

Ainda quero acreditar que a jovem deputada não mediu bem as suas palavras, adoptou um discurso populista e demagogo, e depois confrontada com o que disse, precisou de recorrer a um expediente para não se retraír, e dessa forma não perder face perante o seu eleitorado. Sendo uma estreante nestas andanças da política, quis mostrar que tem pêlo na venta, e deu-se mal. Foi infeliz, coitada. É irrealista pensar que territórios pequenos como Macau, Hong Kong, Singapura ou Taiwan, onde os locais optam por profissões liberais ou na área dos serviços, podiamos passar sem a mão-de-obra estrangeira, sem os não-residentes ou sem os imigrantes, como ela preferir. Se Macau começar a dificultar a vida aos não-residentes, estes vão direitinhos para os outros territórios que referi, e são estes que ficam a ganhar, e nós a perder. Foi através da protecção de que aqueles que procuraram Macau como terra prometida que chegaram ao território os pais de Song Pek Kei, e foi às sombra desses direitos que chegou a deputada através do voto popular. São esses mesmos direitos que a mesma coloca agora em cheque. Mais contenção recomenda-se, e uma longa reflexão antes de disparar sem olhar para quem atinge. Pode ser que acerte nos próprios pés.

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