quinta-feira, 21 de novembro de 2013
Como todos (não) se divertiam...
Visitei este fim-de-semana o Festival de Gastronomia, que se realiza nas imediações da Torre de Macau, e que vai este ano na sua 13ª edição. Os últimos anos têm sido marcados por uma adesão massiva da população, o que me traz sempre à memória as primeiras edições, quando era possível encontrar uma mesa, circular com mais ou menos à vontade, disfrutar do evento, e até passar uns momentos divertidos. Eram os suadosos tempos da crise e da epidemia da SRAS, e peço desculpa pelo atrevimento, mas quem não ficava debaixo da cama com medo de morrer ou não se importa de gastar 100 ou 200 patacas numa noite com medo da Grande Depressão podia divertir-se um pouco. Actualmente o festival é um teste à paciência e aos nervos de qualquer um, até dos mais serenos. Um amontado de gente, cabeças e mais cabeças a perder de vista, e quando parece que as multidões poderiam ficar desencorajadas com esse facto e ficar em casa, o que acontece é exactamente o oposto. A mentalidade vigente parece ser “quem não gosta não vá, mas eu vou”. É como se tivesse sido convocada uma grande confusão, e o resultado seja um enorme sucesso.
É certo que fui num Sábado à noite, e logo no fim-de-semana do Grande Prémio, mas e depois? Duvido que haja um único dia durante as três semanas que decorre o festival onde seja possível encontrar mesa, evitar os empurrões e as cotoveladas, circular com facilidade no recinto anexo à Torre. Fui com um casal amigo e os seus dois filhos pequenos, e a intenção era de apanhar o “shuttle-bus” gratuito que sai da sede do Banco Luso Internacional, na Praia Grande. Uma vez lá chegados, ficámos com uma ideia daquilo que nos esperava. A fila ia do banco até ao Restaurante Solmar, e poucos minutos depois de chagarmos extendia-se quase até à esquina da Avenida D. João IV. Decidimos ir a pé. Afinal era só um pequeno esticão pelos Lagos Nam Van até à Torre, mas não posso deixar de admirar a persistência dos que preferiram esperar pelo transporte gratuito. Mesmo que houvesse um de 15 em 15 minutos – e suspeito que não – os da rectaguarda precisariam de aguardar pelo menos uma hora. Duvido que quem esperava na extremidade final daquela cornocópia não tivesse a plena consciência disso, mas insistiam - os outros que desistam se quiserem, que dali não saem, dali ninguém os tira.
A caminhada fez-se em pouco mais de vinte minutos. Seriam menos não fosse pelas crianças, mas não foi nenhuma travessia do deserto. A noite estava amena, não chovia, e tivemos a companhia de outros peregrinos em direcção ao festival. Chegados à Torre, era possível perceber de longe o que nos esperava. Gente e mais gente a entrar no recinto, que já parecia mais um formigueiro. Atravessámos a entrada principal, e perante aquele cenário, era preciso encher o peito de ar e ganhar coragem para proceder ao essencial: encontrar uma mesa, comprar os bilhetes, conseguir comida. A mole humana era tal que se tornava impossível atentar aos detalhes estéticos, as bancas, a oferta, as promoções, o que se ia passando no palco. Era uma batalha pela sobrevivência, e a missão era chegar de um ponto ao outro sem precisar de se espremer entre a multidão. O primeiro passo era comprar os bilhetes, as senhas, pois por alguma razão as bancadas de comida não aceitam dinheiro vivo. Deve fazer parte da estratégia da Future Bright e do seu cabeçudo-mor, o deputado Chan Chak Mo para garantir que as contas ficam bem feitas. “It takes a thief to catch a thief” – é preciso um ladrão para conhecer os ladrões.
Não fosse pelas crianças, e nem seria necessário uma mesa, só que os filhos deste casal amigo têm três e cinco anos, e é complicado esperar que fiquem duas ou três horas de pé. Nessa função de encontrar uma mesa num Sábado ao fim da tarde, o ideal é chegar ao festival pelas seis ou seis e meia, vir em grupo, e garantir que fica sempre alguém na mesa para guardar o lugar dos restantes, quando o ideal seria que todos pudessem passear, olhar as montras, escolher o que mais gostam e depois sentarem-se e gozar o convívio. Mas no formato actual do festival de gastronomia não resta outra opção senão marcar o território, como os cães que mijam nas esquinas, defender o posto, como os ursos nas suas grutas, e comer para encher a barriga e tornar a experiência mais ou menos tolerável, como os frangos de aviário.
Depois de comprar as tais senhas, a missão seguinte é encontrar a tal mesa. Sem uma única vaga, não resta senão pedinchar, procurar um grupo que aparente estar a acabar de comer, perguntar se estão de saída, e no caso da resposta ser afirmativa, ficar a rodear a área, quais abutres aguardando pelo último suspiro do vitelo desidratado que não resistiu à travessia do deserto. Eventualmente encontra-se mesa, neste jogo da cadeira, e uma vez acomodados, ficamos do lado do receptor, com outros visitantes do festival a perguntarem a cada cinco minutos se demoramos muito, e respondemos que sim, que fazemos planos de envelhecer pelo menos uma hora com o cu no assento, e que vão pedir esmola para outra freguesia. Escusado será dizer que cada um de nós precisa de ir buscar comida por turnos, deixando pelo menos alguém a guardar a mesa, como os antigos cromagnon quando saíam para a caça, regressando com um brontossauro anão para o jantar, enquanto os restantes ficavam a vigiar a caverna.
O que escolher para comer, outro drama. É difícil diferenciar uma bancada da outra, pois as multidões não deixam distinguir um limão de um melão. Quando chegou a minha vez de me abastecer, optei pelo local mais próximo que não tivesse uma fila de duas horas, e por acaso tive sorte, pois a tenda de comida indiana da Aruna só requeria uma infiltração mínima e um pouco de carga de ombros. É preciso ser atrevido também, e para isso recorri aos ensinamentos da minha avó paterna, que quando me mandava à mercearia em frente à sua casa dizia-me para “não ficar encostado ao balcão”. É preciso saber falar por cima dos outros, mesmo sem a certeza de que é a nossa vez de ser “aviado”. Perguntei o que já estava pronto para sair, e lá me safei com um bryiani de galinha e uma parota de ovo. Do mal o menos, já não ia acrescentar o factor da fome ao resto da angústia que é o festival.
E agora, para beber? Uma das maiores atrações do festival é a cerveja, e nunca falta a deliciosa Löwenbräu ou Hoegaarden à pressão, vindas direitinhas da Alemanha – ou pelo menos queremos acreditar que sim. O maior desafio é transportar o copo de plástico até à mesa sem entornar metade, o que se afigura como uma tarefa digna dos Jogos sem Fronteiras. Por incrível que pareça, nem o aperto a que os visitantes do Festival de Gastronomia estão sujeitos os impede de pensar que aquilo é tudo deles, e muitos comportam-se como se estivessem na sua festa de anos, gesticulando, bailando, cantando e rindo, alheios ao facto de estarem rodeados de centenas de outros “aniversariantes”. A viagem de dois minutos – podiam ter sido trinta segundos, sem os desvios – da cervejaria até à mesa podiam ter sido perfeitos, não fosse pelo safanão de uma jovem mais entusiasmada que me fez despejar um quinto do copo na sua roupa. A cachopa achava-se dona daqulo tudo, e esbracejava, rodopiava e ria na companhia de uma amiga, até a coreografia ficar interrompida no momento em que esbarrou com a minha figura, por sua própria culpa, e ainda ficou a protestar com o baptismo involuntário de bávara cerveja. Ainda por cima protestou, e perguntei-lhe se era ceguinha. Foi errada a escolha de palavras da minha parte. Não era ceguinha, mas apenas parvinha.
Depois de um jantar desconsolado, e mantendo o sorriso amarelo, fomos até à zona baixa do Festival, onde se encontrava a atração temática do Festival deste ano: a Tailândia. Os expositores estavam bem apresentados, tinham algubns produtos interessantes, apesar da predominância do "durian", a fruta doninha, e havia até uma promoção da cerveja Singha, com duas latas pelo preço de vinte patacas e a oferta de mais uma grátis! Seria uma maravilha para mim, não fosse pelo facto da Singha saber a mijo de burra. O mais espantoso é que nesta parte do Festival havia muito menos gente, e era - pasme-se - fácil encontrar mesa! Pelo menos não era como a dança das cadeiras que decorria lá em cima. Mas era já tarde, o miúdo mais novo dormia nos braços do pai, e por isso gastámos os últimos bilhetes nos jogos e fomos embora, com o corpo moído daquela tareia que foi o Festival. Ah a crise...que saudades. Era aí que se distinguiam os homens dos ratos, e que se separava o trigo do joio.
Leocardamigo
ResponderEliminarAí ainda há Feira de Gastronomia com muitos problemas de espaço versus cadeiras e malta aos magotes.
Por cá temos malta aos magotes cheia de problemas sem espaço nenhum, feiras cada vez piores e gastronomia foi chão que deu uvas.
Abç