sábado, 21 de setembro de 2013
Terra chama Deus à cabine de som
Tenho uma amiga que cada vez antes de comer uma bolacha que seja “agradece”. Não a quem lhe ofereceu o repasto, e mesmo que o tenha comprador ela própria ou confecionado o prato sem qualquer ajuda, inclina a cabeça e faz uma pequena oração, dando graças a Deus pelo que tem na sua frente, na mesa. Não me levem a mal, pois acho isto fantástico, respeito com todas as moléculas que compõem o meu ser, e chega a ser até uma demonstração convincente de fé, que quase me faz acreditar na plenitude que Deus realmente existe. “Então qual é o problema?”, como dizia aquele saudoso escritor macaense desaparecido em finais do ano passado.
Sendo agnóstico gosto de me divertir enquanto me sento no muro da ignorância sobre o divino enquanto crentes e ateus, essa gente cheia de certezas, vão atirando farpas uns aos outros, socorrendo-se das mais diversas armas de arremesso, sejam as escrituras, a ciência, ou outras provas “categóricas e definitivas” que ora provam ou desmentem a existência de Deus. No entanto, e sem me querer colocar do lado de ninguém, neste caso dos ateus, há uma pergunta que os dotados com a virtude da fé nunca me conseguem responder: se Deus é responsável pelo bem, e por tudo o que temos de bom, a quem se deve atribuir o mal? Quem é que nos anda a tramar enquanto Ele faz o que pode dentro das suas limitadas capacidades de todo poderoso para que sejamos felizes?
É uma questão que me tem vindo a intrigar. Quando alguém está doente e recupera a saúde, dá “graças a Deus”, mas quem foi o responsável para que ficasse inicialmente doente? Será um dos passatempos de Deus avariar para depois consertar? E quando alguém não resiste à doença, onde é que Deus estava? E o que dizer de quando alguém que é um bom cristão, um marido e pai carinhoso, generoso para os amigos e amado por todos vai a conduzir na auto-estrada, completamente sóbrio e cumprindo com rigor todas as regras de segurança, e leva com um camião em cima, conduzido por algum maluco, ficando feito em mil pedaços? E não me digam que Deus “gostava tanto dele que o quis a seu lado”, que essa não cola”.
A maior parte dos crentes, uns mais que outros, prefere guardar para si a sua opinião sobre aquilo em que acredita, e evita entrar em discussões que mexam com a legitimidade que conferem à sua fé. A fé é um pouco como a roupa interior: só se mostra quando rodeado de pessoas de confiança, ou na praia – neste caso particular a “praia” é a igreja, o templo, a mesquita ou seja lá o que for. Mas há quem não se iniba de exibir a sua devoção a qualquer hora e em qualquer sítio, tornando-se um “exibicionista da fé”. No caso dos cristãos, isto verifica-se sobretudo nos seguidores das confissões protestantes, e como um exemplo que nos é próximo temos os brasileiros, e sendo mais preciso, alguns jogadores de futebol, para quem tudo o que acontece de mais positivo é sempre “graças a Deus”. O jogador Káká, por exemplo, estende as mãos em sinal de louvor aos céus quando marca um golo, mas nunca o vejo a pedir satisfações quando falha um “penalty”, ou quando uma partida lhe corre menos bem. Isto só o próprio Káká pode explicar, ou talvez não.
E por falar em explicações, fico sempre desiludido cada vez que coloco este problema aos crentes. Alguns chegam mesmo a rir-se de mim, dizendo que as minhas dúvidas são “próprias das crianças de cinco anos”. Gastavam melhor o seu latim respondedo simplesmente à pergunta, e adquiriam mais elasticidade cerebral reflectindo sobre o assunto, mas a verdade é que não sabem a resposta. São tão ignorantes quanto eu, e ainda com a desvantagem de não ousarem questionar este dogma. Os mais tolerantes – aqueles com que ainda se pode ter uma conversa decente – ficam abananados perante as evidências, como quando acontece alguma tragédia a alguém que não merecia. Se lhes perguntamos como foi possível Deus permitir algo assim, encolhem os ombros e remetem-se ao silêncio. Podiam pelo menos atribuir a culpao Diabo, às forças do mal, mas isso deixaria o todo poderoso menos poderoso, ao deixar o seu inimigo de sempre levar a melhor.
Se recorremos à ajuda de um profissional – um padre, pastor, iman, bonzo ou seja lá o que for – nunca nos é dada uma resposta realmente esclarecedora. Estes “intermediários do divino” têm a tendência para falar de sinais, de sacrifícios, de Deus que nos está a testar quando a vida nos corre mal, e isto quando não se começam a desviar do assunto. Por vezes interrogo-me se os sacerdotes e outros que tais acreditam mesmo no “peixe” que estão a vender. A Igreja Católica, por exemplo, tem resistido aos ventos que a ciência vai soprando e derrubando os dogmas em que assentaram a sua fé durante séculos. Se calhar são um pouco como o Partido Comunista Português: mantém o nome, a simbologia e alguma da ideologia, mas nem eles próprios acreditam que o comunismo é viável na sua aplicação prática.
Não admira portanto que a fé ande bem e recomende-se nos países mais pobres, onde a crença numa recompensa extra-vida pelo sofrimento terreno serve como consolo. O que não dá para entender é como alguém a quem a vida corre mal ainda pode ter tanta consideração por quem não lhe dá uma ajudinha enquanto se vai arrastando por este mundo. Se Deus realmente recompense depois de sujeitar os seus “filhos” a uma vida de privações, então é um sádico do piorio. Existe gente mais abastada que chega a ser bastante devota, mas apenas porque vêm na instituição da igreja um porto seguro contra tudo o que os assusta e não dá lá muito jeito: anarquistas, comunistas, socialistas, republicanos laicos, etc. etc. Todos os que lhe podem um dia ir ao bolso e estragar-lhes a festa, enfim.
Se Deus realmente existe, certamente que me perdoa as heresias que aqui escrevo e que questionam a sua imensa bonomia e fazem com que me arrisque a um valente puxão de orelhas de um dos seus milhares de dedos – Marx e Nietzsche são ainda hoje malditos por muito menos que isto. A verdade é que Deus tem pecado (oops!) por ausência. Depois de um período de grande actividade nos tempos bíblicos, tem-se remetido a um silência confrangedor, e deixado meio mundo a coçar o cocoruto interrogando-se o que anda ele a fazer lá em cima. enquanto aqui em baixo acontecem as piores atrocidades. Era já tempo de nos mandar um sinal definitivo de que a sua célebre omnipresence e omnipotência estão bem e recomendam-se. Enquanto isso prefiro agradecer a mim mesmo pelas bolachinhas e todo o resto que vou obtendo à custa do meu próprio esforço, se não se importam.
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