quinta-feira, 22 de agosto de 2013
Tudo em família
No outro dia conversava com um amigo chinês sobre vários assuntos, e calhou falarmos de infidelidade conjugal e quejandos, um tema sem dúvida sumarento. Chegados à questão da filiação, dei alguns exemplos da vida real, e um deles foi o de Pelé, o maior futebolista de todos os tempos, que tem vários filhos de mulheres diferentes, alguns deles cuja paternidade só viria a assumir anos depois. O meu amigo ficou um pouco surpreendido, e quis saber se estas mulheres com que o “rei” teve filhos “são todas negras, como ele”. Disse-lhe que pelo menos a maioria não era, e isto fez-lhe alguma confusão, pois apesar de Pelé ser rico e famoso, devia limitar-se a produzir negrinhos com fêmeas da sua espécie, abstendo-se da interracialidade. Apesar dos tempos serem outros e se denote uma mudança nos costumes, este é um tipo de reacção muito comum em Macau. Pelo menos no subconsciente da população local, predominente chinesa, e ainda muito tradicional e conservadora, é “cada macaco no seu galho”.
O caso de Pelé e de outros (imaginem que lhe falava de Bob Marley…) passam-se em realidades distantes desta onde nascem e vivem os habitantes de Macau. A multiculturalidade inata do Brasil, por exemplo, é um paradoxo à realidade local, onde ainda não é bem visto para uma rapariga ou um rapaz chinês contrair matrimónio e constituir família com um estrangeiros, especialmente se for um não-asiático. Mesmo no caso da escolha recair sobre um asiático, os coreanos ou os japoneses são mais bem aceites que os restantes. Sendo esta uma sociedade patriarcal, é mais grave ainda se for uma menina chinesa que opta por casar com um “kwai-lo” ou um “hak-kwai”, nomes como são conhecidos os brancos e os negros, respectivamente. O facto de se interessarem por eles ou até de com eles terem trocado dois dedos de conversa intriga os pais e levam-nos a pensar: “onde é que eu errei?”. O primeiro comentário que fazem após conhecer o noivo estrangeiro da filha, mantendo em alguns casos a compostura apenas a muito custo, é “onde é que se conheceram?”. Como quem diz “por onde é que tu andaste, sua degenerada?”.
Nisto dos valores, Macau até beneficiou do facto de ter sido governado durante séculos por uma potência ocidental. Existiu sempre uma respeitável dose de tolerância com a presença de estrangeiros, apesar de ainda haver muito boa gente que os gostava de ver pelas costas. O encontro entre os povos, o ocupante e o ocupado, deu origem à miscigenação de onde saíram os macaenses. Mas por ter existido e ainda existirem os casamentos mistos, não quer dizer que sejam recebidos com banquetes de doze pratos, danças do leão e rebentamento de panchões. Na China a sanguinidade é de uma importância tal que ainda hoje o país não reconhece a dupla-nacionalidade, e mesmo a nacionalidade só pode ser obtida por não-chineses através do casamento. Mas como sempre a regra de ouro é esta: quem não tem sangue chinês, não pode ser chinês. A questão linguística tem também a sua quota de importância. Pode-se dizer que os chineses são etnocentristas, e quem vive em território chinês e não fala o idioma, é encorajado a aprendê-lo. Na China os estrangeiros adaptam-se aos costumes chineses, e nunca o contrário.
Sendo o único estrangeiro no meu local de trabalho, por exemplo, escuto dos meus colegas comentários a este respeito que revelam um conservadorismo atroz, que só não chamo de racismo ou de xenofobia porque existem razões de sobra para eles pensem desta forma tão pouco progressista, defendendo valores ultrapassados e baseados em preconceitos e lugares-comuns errados. Um dos mais comuns é: “os casamentos entre chineses e estrangeiros não resultam”. Para defender esta teoria de polichinelo escudam-se em factores como a cultura ou a língua, já referidos, ou noutros completamente fúteis. Muitos dos meus colegas têm amigas casadas com estrangeiros, o que me leva a pensar que depois de exibirem no seu casamento a cara de plástico da praxe dizem-lhes: “parabéns…e os meus pêsames”. Só uma grande cara-de-pau lhes permite dizer algo como “felicidades” sem acrescentar “…mesmo que eu não acredite”. O meu casamento falhado com uma chinesa de Macau seria suficiente para perder qualquer argumento desta natureza, mas o que correu mal com o meu casamento é o mesmo que corre mal com todos os casamentos que acabam.
Sim, pois quem fala assim não é gago, e até parece que os casamentos entre chineses são eternos, não existem divórcios na China e os que acontecem em Macau são causados pelas “irreconciliáveis diferenças culturais e linguísticas”, tudo por culpa do estrangeiro, claro. É óbvio que os chineses se divorciam, e cada vez mais, e muitos só não o fazem porque se dá um valor inestimável à unidade familiar. Mesmo que ambos se detestem e andem a decorar a testa um do outro com chifres, ficam juntos, nem que seja “para bem dos filhos”. Entre os mais velhos ou com uma mentalidade mais antiquada, divorciar-se é assumir um erro, admitir que se falhou, e por isso uma “perda de face”. Quem mais sofre são normalmente as mulheres, que toleram as escapadelas do marido enquanto sofrem em silêncio. Muitos deles chegam mesmo a ter “outra família” na China, uma amante, filhos, e até uma casa comprada em conjunto com a concubina – uma palavra antiga que em pleno século XXI ainda não caíu em desuso. Há casos em que os maridos assumem abertamente “ter uma mulher e uma concubina”, e muitas vezes à frente de amigos comuns do casal. Os mais civilizados, chamemos-lhe assim, não podem deixar de sentir alguma pena da esposa, mas esta mantém as aparências, como se nada fosse.
Não surpreende que proposta que pretendia tornar a violência doméstica um crime público tenha ficado na gaveta, em nome da “harmonia familiar”. Assim uma mulher que acabe de levar um valente ensaio de porrada e cometa a audácia de fazer queixa, pode retirá-la logo que o marido ameaçe não lhe dar mais um centavo, trocá-la pela amante, metê-la no olho da rua e ficar com as crianças. Fosse este um crime público e lá tinha o senhor que pensar duas vezes antes de mandar a “patroa” para o hospital, ou teria responder pelos seus actos barbáricos, levar com a mão pesada da justiça e ainda se arriscar a levar mais caso reincida. Isto não é “harmonia”, não senhor. Se coloco na mesa redonda da discussão com os meus colegas estes factos e mais alguns, eles não se impressionam, e ainda acham que lhes estou a dar razão: não entendo estas coisas porque não sou chinês, e por isso casar comigo só pode dar mau resultado. E lá vão eles convencidos que me fizeram xeque-mate, e lá fico eu calado, lembrando da valiosa lição que o meu paizinho me ensinou: “é melhor dar sempre razão a um maluco”. Sem ofensa para os meus colegas, pois aqui não se trata tanto de maluquice. É mais casmurrice. Fiquemos assim.
Eu não lhe chamo uma sociedade conservadora, mas sim uma sociedade tacanha, ignorante e de vistas curtas
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