quarta-feira, 21 de agosto de 2013
Ataram-lhes as mãos, agora cortem-lhes as pernas
O Executivo aprovou recentemente duas leis que transformaram a face do mercado do imobiliário; uma que torna obrigatório o registo e a transmissão dos “lao-fa”, as fracções autónomas dos prédios ainda em construção, e outra que regula a actividade das agências de fomento imobiliário. Esta última foi um duro golpe nos especuladores imobiliários, que assim passaram a ser obrigados a cumprir algo de que nunca tinham ouvido falar: regras. Foi graças a estes especuladores e as estas agências que as coisas estão como estão. Habitações que mais se assemelham a tocas de ratos passaram a custard milhões do dia para à noite, uma casa minimamente decente que se podia adqurir por menos de um milhão à dez anos passou a custar cinco ou seis milhões, e actualmente um milhão mal dá para comprar um estacionamento automóvel, dependendo da localização. Com tudo isto as rendas também dispararam, e como disse na segunda-feira o deputado Pereira Coutinho, as 1500 patacas de subsídio de residência atribuidas aos funcionários públicos “não dá para alugar uma retrete”.
Com a nova lei passou a ser mais difícil roubar descaradamente – não é impossível, mas é mais complicado. Em poucos meses a compra de habitações hiper-inflacionadas baixou em menos de metade, e os investidores do exterior, os mais endinheirados, viraram-se para os tais “lao-fa”. Isto deixou os agentes imobiliários descontentes, naturalmente. Muitas agências fecharam, e a tendência é que outras sigam o mesmo caminho. Produzir esta legislação foi uma forma airosa do Executivo atenuar o mal sem o cortar pela raíz, como devia ter feito logo que a situação se começou a tornar penosa para os residentes, que ficaram na mão dos especuladores. Na altura ficou famosa a frase de Chui Sai On a propósito do assunto: “o mercado é livre, não podemos interferir”. Para muito boa gente a interpretação de “livre” é “poder roubar à vontade”. Ai somos livres? Toca a fartar vilanagem sem temer consequências. Razão tinha Jackie Chan quando aqui há alguns anos disse que “liberdade demais pode ser perigoso”. Talvez por ter dito isto quando se encontrava na China a promover um filme foi bastante criticado, mas na verdade foi apenas mal-interpretado. Era deste tipo de “liberdades” que ele falava.
Um dia destes estava no serviço quando chegou à recepção um rapaz filipino, bem aparentado, jovem, que veio pedir informações a respeito do seu contrato de arrendamento. A minha colega disse-lhe que isto não se inseria nas competências da nossa repartição, e veio-me perguntar se não me importava de falar com ele, em todo o caso, uma vez que ela não dominava a língua inglesa na perfeição. De facto não me importei de o atender e de lhe dar algumas sugestões, apesar de, como já referi, nem eu nem ninguém naquele lugar poder fazer por ele o que quer que seja. De facto, não existe nenhuma repartição pública que atenda casos de incumprimento ou outras disputas relacionadas com o arrendamento, mas devia existir. Era mais uma bofetada de luva branca nos agentes desonestos e alguns proprietários-senhorios sem escrúpulos, que haja o que houver, ficam sempre por cima.
O jovem filipino contou-me que ele e a esposa, também ela filipina e ambos trabalhadores de um hotel-casino no COTAI, alugaram um T2 na zona do Largo do Senado em finais de Agosto de 2012, pela renda de 6600 patacas. Fizeram um contrato de um ano, pagaram a renda desse mês, dois meses de depósito e mais um de comissão para a agência. Uma despesa significativa para dois trabalhadores migrantes, e foi aqui que lhe perguntei porque não alugaram antes um quarto numa habitação já arrendada, partilhando o resto das divisões com outras pessoas, como tantos compatriotas seus fazem. Explicou-me então que tanto ele como a esposa ganham consideravelmente bem, e têm a cargo uma criança de pouco mais de um ano, por isso optaram pela privacidade – uma coisa que em Macau é cada vez mais cara. Ainda achei que 6600 patacas por um T2 num prédio antigo é relativamente caro, e que na zona onde resido, por exemplo, e que fica a cinco minutos a pé do Largo do Senado pode-se encontrar outro mais ou mesmo nas mesmas condições por 5000. Mas prosseguindo a saga do “pare”.
Um pouco angustiado, desabafou comigo que o agente imobiliário lhe ligou o mês passado e disse-lhe que o senhorio “queria vender o apartamento”, e por isso ele precisava de pegar nos tarecos e desopilar dali para fora. Mas, mas, mas…se estivesse disposto a pagar mais um mês de comissão à agência, podia ficar mais um ano, mas, mas, mas…a renda seria aumentada. Como já estava com o queixo caído até ao chão, nem lhe perguntei em quanto lhe iam aumentar a renda. Já meio a soluçar, disse-me que a lei obriga a que se façam contratos de dois anos, e até me queria mostrar o artigo do Código Civil, que tão pitorescamente tinha gravado no iPhone. Nem era necessário, pois isto estamos todos carecas de saber. A lei diz de facto muitas coisas: contratos no mínimo de dois anos, um mês de depósito no máximo e pelo menos um mês de notificação caso não se queira renovar – atendendo que se tornou um hábito pagar dois meses de depósito, deve-se notificar pelo menos com dois meses. Isto para não falar da proposta da agência, que além de altamente irregular, senão mesmo criminosa, é uma tremenda aldrabice. Desde quando é 6600 patacas a mais que a agência fosse demover o proprietário de vender o apartamento por não sei quantos milhões? É um bolo de mentira com recheio de chantagem. Mas é assim mesmo. A lei impõe, o homem dispõe, e os agentes imobiliários de Macau limpam o cú a ela.
O jovem revelou que não estava interessado em fazer tamanho investimento, até porque em Dezembro próximo a mulher vai para as Filipinas de vez com o filho de ambos, e não se justifica pagar tanto para ficar com a habitação toda só para ele. Lamentei a situação, mas o melhor que pude fazer foi recomendar-lhe que saísse imediatamente dali para fora, e de preferência a tempo de recuperar ainda pelo menos um dos meses de depósito que pagou antecipadamente – seria uma ingenuidade esperar que reavesse a totalidade. Uma vez que de “comido” já não passava, que tentasse minimizar os danos. Podia sugerir que ameaçasse recorrer às instâncias judiciais, ou então ao CCAC, porque não, já que agora alegadamente investigam também o sector privado, mas sendo ele trabalhador não-residente duvido que os parasitas que lhe andavam a chupar a carteira o levassem a sério. Ainda para mais sendo filipino, pois ao roubo, à ilegalidade, à mentira e à chantagem, estas associações de malfeitores juntam ainda o racismo.
Comigo passou-se algo semelhante, mas com um final feliz. Ou mais ou menos isso. Aluguei o meu penúltimo apartamento em Setembro de 2011, e paguei quatro meses, tal como o “pare” que desabafou comigo nesse dia e a esmagadora maioria das pessoas que alugam casa. Um ano depois foi-me renovado o contrato e aumentada a renda – um aumento irrisório, uma vez que até considerei o preço inicial uma pechincha. Em Novembro de 2012 o proprietário vendeu a casa, e quando recebi a sua simpática visita, os meus novos senhorios garantiram-me que “tudo ficava na mesma”. Excelente. Entretanto em Abril, surprise, surprise, a senhoria liga-me e diz que quer a casa de volta, e que teria que desocupá-la antes de Setembro, data do término do contrato. Porreiro, disse-lhe eu, e em Maio decidi que lhe devolvia a casa antes do final de Junho, contando que reavesse os meus dois meses de depósito. Foi aqui que a porca torceu o rabo, pois a senhora disse-me que uma vez que tinha pago o depósito ao anterior proprietário, era a ele que devia pedir o dinheiro. No que estava eu metido…fosse este o mundo ideal, e começavam logo a voar cadeiras pela janela e a cair pratos em cima da cabeça de alguém. Mas respirei fundo…
Puto da vida, naturalmente, e já arrependido por ter pago a renda do mês de Maio, disse-lhe que nesse caso não lhe pagaria mais a renda, e que devia ter acertado estes detalhes na altura da aquisição do apartamento, até porque sabia que eu estava a arrendá-la. Posto isto, comuniquei-lhe a decisão de não lhe pagar mais um avo até sair dali. Gaguejou, esbraçejou, e que não pode ser, que a lei diz que o depósito é devolvido mas “é ilegal” não pagar a renda. É engraçado como quando a “lei” dá jeito, não só se prontificam a cumpri-la como ainda nos atiram com ela na cara. Respondi muito tranquilamente que lhe pagaria a renda, sim, contando que tivesse o dinheiro do depósito na mão. Já mais calma, deixou-me assegurado, e que iria tratar do assunto com o anterior proprietário pessoalmente. Já mais que consciente que não ia mais ver a massa daquele mês de depósito, deixei o apartamento no final de Junho, como combinado, sem pagar a luz e a água, cancelei alguns pequenos consertos que tinha em mente fazer para tornar a minha vida melhor (a ficha do ar-condicionado da sala derreteu e ficou colada dentro da tomada) e ainda levei comigo uns “recuerdos”: um ou dois armários, um colchão, o fogão, a bilha de gás e o rotor, só para citar alguns. Coisas que me faziam falta na nova casa e não me apetecia investir na sua compra.
De facto é impossível ficar a ganhar. Com alguma sorte, dependendo da honestidade dos senhorios e dos agentes (portanto, a sorte é mesmo essencial) consegue-se ficar “quites”. Não adianta que esteja tudo preto no branco no contrato; a interpretação de alguns pontos é difusa, e há sempre um elevado grau de sacanice e de má vontade da parte de alguém. A maior parte destes tipos incumbe as agências de encontrar um inquilino que lhes arrenda a casa e nem se preocupam em deixá-la em condições mínimas de habitabilidade. Algumas das que vi nem electromésticos ou mobília tinham, e em alguns casos parecia que se tinha ali realizado uma orgia romana no dia antes. E mesmo nestes casos acham-se com uma capacidade negocial enorme, e ainda esperam que lhes limpem, mobilem e equipem a casa, que afinal é sua! O que dá vontade é deixar uma enorme bosta no meio da sala no dia em que lhes devolvemos a chave. É bom que o Executivo resolva colocar um travão neste bólide do imobiliário, e lhe reduza a velocidade. Mas no caso destas agências larápias, era ideal que lhes suspendessem a carta de condução.
"T2 num prédio antigo é relativamente caro, e que na zona onde resido, por exemplo, e que fica a cinco minutos a pé do Largo do Senado pode-se encontrar outro mais ou mesmo nas mesmas condições por 5000"
ResponderEliminarCuriosidade: a que zona da cidade se refere?
Perto da Rua do Tarrafeiro, na zona que compreende a IOgreja de Santo António, o Jardim Camões, e a Ponte 16.
ResponderEliminarCumprimentos.