terça-feira, 30 de julho de 2013

Sô chofer, por favor, não seja um estupor


Quem segue o blogue com mais atenção recorda-se certamente desta entrada no final da semana anterior, onde faço um relato detalhado de um desaguisado que tive com um motorista de autocarro, que hesitou em abrir a porta e deixar-me tomar o transporte, apesar de me encontrar na paragem designada para o efeito. Escrevi aquele "post" assim que tive acesso a um PC com ligação à rede, "malhando o ferro" enquanto ainda estava quente, cuidando que a mostarda ainda se situava ao nível do nariz, e ficasse bem expresso o meu descontentamento com o péssimo serviço de um professional da rede de transportes que tem por missão servir a população. É um facto que recorri livremente a um tipo de linguagem mais colorida, mas a forma como me senti ofendido na dignidade levou-me a não ser poupado no recurso à obscenidade e ao insulto gratuito. Já é desagradável quando se esgota a via da diplomacia, mas quando esta nem chega a sair da gaveta, não há chá de camomila que dilua a acidez da bílis.

Partilhei a minha pequena odisseia com colegas, amigos e conhecidos que fui encontrando nos dois ou três dias que se seguiram, e além da simpatia que recebi e do apoio unânime à decisão de fazer um manguito ao motorista, notei ainda uma reacção passiva ao comportamento do meu antagonista, que foi recebida com "normalidade". Não se tratava de indiferença ou qualquer coisa que beliscasse a legitimidade da minha revolta, mas aparentemente situações desta natureza começam a tornar-se tão frequentes que já não consitituem novidade ou surpresa. Escutei mesmo outros episódios passados com os meus convivas, ou por eles testemunhados, alguns deles mesmo chocantes e com uma intensidade igual ou superior àquele que se passou comigo. Tudo indica que estas altercações entre motoristas e passageiros ocorrem com frequência diária, e só não são mais devido à passividade inata de que sofre ainda muita da nossa população, que reage ao desaforo com uma atitude muito "zen". No fosse a famosa "paciência de chinês" dos locais, e a profissão de motorista era considerada de alto risco, recusada pelas seguradoras e elegível para uma licença de porte de arma. Dar aulas num liceu da periferia da Amadora ia parecer ao docente um piquenique no campo, perante o que podia acontecer caso um motorista de autocarro levasse uma resposta à medida dos abusos que comete.

Das queixas que já ouvi o que mais se evidencia é a diversidade das mesmas. Reconheço que deve ser complicado a alguém que se encontra confinado a um assento em frente a um volante provocar tantos transtornos e raramente repetir os mesmos. Deve ser preciso uma grande dose de criatividade e muita imaginação. Um dia mais produtivo consistirá em omitir uma ou outra paragem, passando ao lado de outro autocarro parado à sua frente e deixando apeadas as pessoas que ali esperavam, seguido de uma arrancada súbita da paragem, apesar de notar ao longe o cidadão que vem a fazer um "sprint" enquanto gesticula, para ver se ainda apanha o transporte, e para acabar nada como ignorar uma velhinha que bate desesperadamente na porta implorando para entrar, com o veículo à distância de meia dúzia de metros da paragem - regras são regras, tivesse chegado a tempo! Pelo meio pratica-se uma condução periciclante que faz o autocarro tremer que nem uma batedeira eléctrica, ensaiam-se umas travagens bruscas de modo a testar a segurança, e que não sai ninguém disparado pelo vidro da frente, e quebra-se a rotina com o divertido jogo "quantas pessoas se conseguem enfiar num autocarro", permitindo a entrada a mais passageiros mesmo quando os que leva estão apertados ao ponto de já só conseguirem mexer os olhos. Um motorista de autocarro em Macau deve ter sempre imensas histórias para contar todos os dias à mesa do jantar.

Há quem apresente várias teorias para explicar o comportamento errático de alguns destes motoristas. Uma delas é a escassez de profissionais qualificados, e a dificuldade em recrutar e dar formação a novos motoristas, que leva os actuais a pensar que gozam de espécie de imunidade, e que a tolerância da parte da sua entidade patronal é infinita. Outros defendem que o decréscimo da qualidade do serviço se deve à opção por motoristas do continente chinês, onde se pratica uma condução mais agressiva, as regras são mais facilmente contornáveis e conceitos como "cortesia" ou "serviência" são ainda estranhos. Uma explicação menos recorrente mas nem por isso descartável é a de algum ressabiamento pelo facto dos colegas taxistas irem cantando e rindo enquanto fazem gato-sapato dos cidadãos, selecionando a clientela e cobrando tarifas criminosas a seu bel-prazer, enquanto eles aturam os pés-de-chinelo que optam pelo transporte público, onde o salário é o mesmo seja qual for o número de passageiros, ou que se trabalhe bem ou mal. Sendo assim opta-se por se trabalhar mal, e já agora porcamente, também. Qualquer destas teorias e outras que não referi poderá explicar a displicência dos motoristas, e alguns casos mais graves podem mesmo ter duas destas como causa, ou um pouco de cada uma. Só Freud explica, enfim.

É um facto que andar de autocarro em Macau é uma opção económica, especialmente se compararmos o mesmo serviço noutras cidades da região, especialmente Hong Kong, mesmo aqui ao lado. O governo oferece-se generosamente para cobrir parcialmente a tarifa a quem opte pelos cartões pré-pagos, e os idosos viajam de forma gratuita. Mas nem que se pagassem apenas dez avos, isso seria justificação para prestar um mau serviço. Não é por ser mais barato ou mesmo dado que vai aceitar ser tratado como gado enfiado à má fila no camburão do matadouro. E nem a abundância que é ter três concessionárias de transportes públicos a operar, o que normalmente sugere que cada uma tente prestar um serviço melhor que a concorrência, redime a experiência traumatizante que constitui andar de autocarro na RAEM. Como se não bastasse o desconforto de partilhar o mesmo espaço com estranhos, num ambiente de odores mistos, fruto dos variáveis graus de higiene pessoal, espremidos contra roupa impregnada por secreções sudoríferas e expostos a uma flora bacteriana de proporções amazónicas, ainda temos que levar com a má educação e rabujice dos motoristas? Se por acaso a sua atitude advém do facto de pensarem que estão a levar ali bois e não pessoas, basta olhar para o espelho mesmo à sua frente para perceber quem é afinal a besta bovina. E olhem com jeitinho, não vão os cornos partir o vidro.

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