segunda-feira, 24 de junho de 2013
Vox populi
Fui um dia destes a uma mercearia de produtos indonésios perto do centro da cidade. “Perto do centro” nos dias que correm, e ainda mais para um negócio desta natureza, significa que se encontre num dos becos obscuros nos arredores do Largo do Senado, situado no meio de prédios condenados e outros em estado de semi-ruína, onde ainda é possível arrendar um espaço comercial por um preço abaixo dos seis dígitos. Tratando-se de um comércio de características assumidamente étnicas, uma loja de produtos da Indonésia onde também se faz comida típica para fora, não entra no cartão-postal do território, e o grosso da sua clientela serão as trabalhadoras indonésias a viver em Macau. Foi na companhia de uma amiga daquela nacionalidade que lá me desloquei, e desconhecia completamente a existência do local, como é lógico.
Contudo ao balcão estava um jovem cuja aparência não dava a entender ser indonésia. Era um chinês natural e residente de Macau, e desconheço o que estaria ali a fazer. Teria uma namorada indonésia ali a trabalhar, seria um dos sócios, um pequeno-médio empresário, não sei nem perguntei. Enquanto a minha companhia aguardava pelo petisco caseiro para levar para casa, troquei dois dedos de conversa com o jovem – não teria mais que 30 anos – e o seu inglês corrente tornou a conversa mais longa do que seria de esperar, e até bastante agradável. Gosto de trocar impressões com o cidadão-médio local, saber como vivem, as suas aspirações e anseios, tomar o pulso à massa humana da RAEM. Não o faço com mais frequência ou mais abertamente devido à barreira linguística – não é fácil identificar quem fala português ou inglês sem ter um bom motivo para iniciar uma conversação. Ninguém tem escrito na testa que fala uma língua cristã, ou que está aberto a trocar impresses com um desconhecido sobre temas curriqueiros como a inflação ou a meteorologia. A maior parte das vezes estabelecer a comunicação com alguém que tem qualquer coisa de interessante para dizer depende é produto do acaso.
Claro que tenho os colegas de serviço e alguns amigos, mas estes mostram-se muitas vezes reservados e desconfiam de algumas conversas, rodeando-se de muros altos que não permitam revelar detalhes mais íntimos. Não é à toa que a legislação sobre a protecção dos dados pessoais tenha sido tão consensual. Aqui o dinheiro é uma espécie de religião para muitos, e quanto menos se souber melhor. Mesmo que isto tenha um efeito preverso em termos de transparência, mas serve que nem uma luva a quem nem todos os rendimentos são lícitos. Há quem fique a queimar os neurónios tentando perceber onde vai tanta gente buscar dinheiro para comprar apartamentos de milhões ou suportar rendas astronómicas em alguns espaços astronómicos. Eu explico recorrendo a uma pequena alegoria: investiram no Omo, que lava mais branco. Para bom entendedor…
Mas voltando ao jovem “oumunian”, bastante simpático, diga-se de passagem. De início revelava alguma timidez, típica de quem dialoga com alguém que acaba de conhecer, e ainda para mais um estrangeiro. Após lhe ter revelado a minha longevidade no território, sentiu-se à vontade para me tratar como seu igual, e a partir daqui estava quebrado o gelo. O pontapé de saída da conversa teve como pretexto um pacote de massas instantâneas vietnamitas que observei numa das prateleiras, que ambos concordámos serem uma delícia, e em comum partilhamos o facto de ter visitado o Vietname, que consideramos “barato” em relação ao nosso poder de compra. E já que se falava do que é barato e caro, foi um pequeno passo até tecermos considerações sobre o custo de vida em Macau, a inflação galopante e os seus efeitos na economia doméstica das famílias, e como não podia deixar de ser, o preço da habitação. O que pensamos nós, os portugueses, relação a este aspecto já estava eu farto de saber. Desta vez soube bem desabafar com alguém de cá, que sempre aqui viveu, e que partilha da mesma angústia. Aliás nunca me passou pela cabeça que o preço proibitivo dos apartamentos e o corridinho das rendas fosse um problema exclusivo dos portugueses e restante expatriados. A malta de cá também sofre, e está atenta à situação.
Falei-lhe de como era possível adquirir uma fracção por 300 mil patacas quando cheguei a Macau em 1993, ao que me retorquiu “eu também…quando era pequeno”. Agora que é um jovem adulto e quer fazer a sua vida, é-lhe impossível adquirir habitação própria, e actualmente com 300 mil “só um estacionamento para um motociclo”. Ri-me, pois apesar de não ter piada nenhuma, é uma realidade que não me canso de repetir. Lamentámos não ter aproveitado a crise de 2003/2004, quando a epidemia da SRAS tornou os preços mais convidativos, mas aí está, mas uma vez em uníssono, desabafámos um quasi-filosófico “é impossível prever o futuro”. Quem tivesse conseguido juntar umas economias quando ainda era possível comprar uma casa decente sem a ficar a pagar durante três gerações e adqurido duas ou três, estaria agora no melhor dos mundos. Bolas, que pena. Por acaso isto é uma coisa que me chateia: não ter poderes premonitórios. Não me canso de dizer que gostava de voltar a nascer sabendo o que sei hoje. Dava um jeito do caraças.
Estando em pleno mês de Junho, não podiamos deixar de abordar a questão dos cheques, que em breve começam a chegar aos residentes. Este ano são oito mil patacas, o que apesar de dar algum jeito não é uma panaceia para todos os males. Desabafei que o Executivo tem capacidade para dar cheques de oito mil patacas aos residentes todos os meses, e não apenas uma vez por ano. Só falta mesmo é vontade. Foi aí que o jovem produziu uma verdadeira pérola, uma solução que seria genial caso o Governo se decidisse a pô-la em prática em vez de distribuir cheques feito Pai Natal fora de época: todos os residentes deviam ter direito a habitação própria. Elaborou ainda melhor o conceito, acrescentando que “a habitação seria propriedade do Governo, mas os residentes teriam direito a ocupá-la gratuitamente”. Isto não impediria que se pudesse continuar a vender, a comprar, a especular e a dar a oportunidade em que investe no imobiliário de fazer pequenas fortunas, nada disso. Seria apenas garantir que ninguém ficava sem um local para morar, ser obrigado a viver com os pais já na plenitude da emancipação, ou ser obrigado a constituir família numa caixa de fósforos. “Epá, se este gajo concorrer às eleições de Setembro voto nele sem pestanejar”, pensei com os meus botões.
Já de saída cumprimentei-o, agardeci-lhe os dois dedos de conversa, e apesar de tudo se resumir a mero falatório, soube bem desabafar e trocar impressões. Fiquei a saber mais sobre a classe média, a tal que ninguém sabe muito bem onde anda ou o que pensa. Afinal pensa, sim. E sente, e é filha de boa gente. A ideia redutora de que a população da RAEM é mesquinha, egoísta, com uma mentalidade comercialista e que aceita de bom grado o capitalismo selvagem que se vai praticando porque ambiciona a uma fatia do bolo é mentira. O mercado do imobiliário local, que tantos usam para enriquecer, vai deixando para segundo plano o propósito inicial de levantar prédios e blocos de apartamentos: meter a sua gente lá dentro. Uma vez que esse princípio estivesse concretizado na sua plenitude, seria então legítimo esse logro que é vender por dez ou vinte milhões aos endinheirados do exterior habitações que na realidade não valem metade do valor que pedem por elas. Uns podiam continuar a rir, mas pelo menos ninguém ficava a chorar. Assim estamos a construir a casa pelo telhado. Fui a uma loja indonésia, e fiquei a saber mais de Macau. Irónico, no mínimo, mas uma agradável surpresa.
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