terça-feira, 18 de junho de 2013
Os filhos do Silva
Quando era chavalo tinhamos uma espécie de “anedota” (não chegava a ser engraçada) sobre o “filho do Silva”. A lenga-lenga era sobre um jovem que obtinha todo o tipo de vantagens e gratuitidades, e para tal bastava dizer que era “filho do Silva”. Um dia mais tarde, já no seu leito de morte, o pai prepara-se finalmente para lhe explicar o porquê desta estranha benção, mas o velho Silva dá o último suspiro antes que possa contar ao filho a razão porque tudo lhe foi dado de mão beijada simplesmente por dizer quem era. O conto era uma espécie de rasteira para deixar o nosso interlocutor na expectativa, e depois irritá-lo com o desfecho. Executada por um talentoso contador de chalaças, este truque produzia normalmente o efeito desejado. Concluir com um “Olha filho…a razão porque te davam tudo quando dizias que eras meu filho é porque…e morreu”, seguindo-se de um “F…-se, vai pró c…” era um deleite para o ego. Mais um patinho que caíu no conto do “filho do Silva”.
No mundo real o que não falta são filhos que vivem à sombra do sucesso, do dinheiro ou da influência dos pais. Não venho de famílias ricas, de grandes comerciantes ou latifundiários, mas isso não impediu que lá na terra fosse conhecido pelos mais velhos apenas como “o filho do António João”, ou entre os ainda mais velhos, “o neto do Zé António”. Duvido que estes conhecidos dos meus pais e avós soubessem o meu nome próprio, mas a pele tenrinha própria da minha juventude chegava para fazer rechaçar o vexame. “Sim, sim, sou filho de fulano e neto de outrano, e vou continuar a ser depois de V. Exas terem batido as botas”, dizia para os meus botões, confiante na implacável marcha do tempo que me faria justiça. Pelo menos estou onde estou hoje graças ao suor do meu rosto, e às vezes bem outras mais ou menos, vou parar às estações do destino guiado pelas minhas próprias decisões. Ainda tenho alguns bons anos pela frente, espero, mas duvido que vá deixar aos meus descendentes uma grande fortuna, mas estou certo que não me recordarão como “aquele grande sacana que não nos deixou cheta”. Não fui “filho do Silva”, mas também nunca cheguei a “Silva”. Boa sorte para os que vou deixar, é o mínimo que posso desejar.
Alguns defendem que as grandes fortunas só aguentam no máximo três gerações. A ser verdade isto são más notícias para os bisnetos de “self-made men” como Stanley Ho, Belmiro de Azevedo ou António Champalimaud. Não reconheço a eficácia desta teoria, até porque nascer em berço de ouro é a melhor forma de começar nesta vida onde é cada vez mais importante ter uma conta bancária bem recheada para ser levado a sério. Pode não significar o primeiro lugar do pódio, mas pelo menos é sair da “pole-position”. O tempo dos pobrezinhos que se tornaram milionários à custa de muito trabalho, um “timing” perfeito e a essencial pitada se sorte já lá vai. Nos dias de hoje dificilmente alguém com a quarta classe que começa a trabalhar aos 13 anos chega longe – mais do que isso, seria considerado trabalho infantil e objecto de intervenção dos agentes da acção social. O contrabando também é chão que já deu mais uvas, e as oportunidades não são tantas como nos idos tempos do pós-guerra, quando a reconstrução do mundo criou uma geração de milionários. Enriquecer depressa nos tempos que correm implica um risco onde a probabilidade de sucesso é muito menor que acabar na cadeia ou com um balázio na testa. Quem não conta com a simpatia dos regimes novo-riquistas precisa de olhar bem para o chão onde pisa. Mikhail Khodorkovsky, Bo Xilai e outros que pisaram os calos errados que o digam.
É apenas natural que os ricos queiram preparar os filhos para a continuidade da sua fortuna e do seu “bom nome”. Os “filhos do Silva” disfrutam de uma infância opulenta, frequentam os melhores colégios, vêem abrir-se todas as portas, rodeados de criadagem e engraxadores, alheios ao conceito de trabalho duro e ignorando o que é passar um dia de fome. Facto. Quando tomam as rédeas do negócio que os pais lhe deixaram não se livram da associação com o nome dos progenitors, das comparações com a sua capacidade e da eventual má-língua: “Aquele só é quem é porque o pai era o Silva”. Até o mundo do futebol não foge à regra: não há futebolista de sucesso que tenha visto os filhos excederem-nos. Lembram-se do filho do Cruijff? Uma anedota. E o filho do Pelé, que esteve preso por tráfico de droga? Alguns cujos pais foram futebolistas modestos conseguiram superá-los em fama e talento: Bruno Alves e João Moutinho, filhos de ex-futebolistas medianos, e outra vez Pelé, cujo pai teve uma carreira discreta.
Alguns filhos desnaturados ou mais revoltados estão-se nas tintas para o nome dos “Silva” e preferem gozar a vida estoirando o dinheiro dos pais, indiferentes à perspectiva dos seus próprios filhos precisarem de fazer pela vida como o resto da carneirada que não teve a sorte de nascer com uma colher de prata espetada no rabo. Outros preferem usar o poder e a influência herdada tomar um rumo diferente, uns com mais sucesso – os politicos, por exemplo –, outros com menos – alguns artistas, sendo o talento irrelevante face ao peso da heridatariedade quando se trata de obter notoriedade. Ai da galeria que se recuse a expôr os quadros do filho do sr. comendador. Querem fazer um filme, os meninos? Compra-se uma produtora de cinema qualquer. Alguns “Silvas” insistem em preparar os filhos para seguir as suas pisadas. Nada lhes dói mais se pelo menos um deles não evidenciar algum jeito ou merecer confiança para manter o negócio nas mãos do clã. Outros menos orgulhosos não se preocupam se os herdeiros forem esbanjadores irresponsáveis preocupados apenas em viver à sua custa. Para algumas pessoas o facto dos filhos não terem precisado de passar pelas mesmas dificuldades que eles próprios é já uma grande conquista.
O mais importante nesta fábula dos Silva e dos seus filhos é transmitir a mensagem: nada se conquista sem trabalho e dois dedos de testa. A melhor lição de vida que se pode deixar a um filho é de que não há nada mais gratificante que o mérito obtido através do próprio esforço, e não pela reverência e pela subserviência, ou outros expedientes mais rasteiros. Não deve haver nada mais frustrante do que ouvir de alguém qualquer coisa como: “tens sorte de ser filho de quem és” ou “faço-te um favor por respeito ao teu pai”. Mas para quem se quer libertar do peso do nome e subir na vida a pulso, e depois farta-se das dentadas deste mundo cão e dos trambolhões causados por tantas patarronas que encontra pelo caminho, dá jeito puxar dessa carta na manga para se chegar à frente: - “Epá pronto, sou filho do Silva, sabia?” – “A sério? Se precisar de qualquer coisinha é só dizer, patrãozinho”. Não fica mal se for usado com boas intenções e sem prejuízo de outrém. Quem sabe se no fim a obra vale mesmo a pena, e até ficávamos a perder não fosse o rapaz ter uma cunha do paizinho? Quem nos dera a nós poder ser também um dos “Silva”, enfim.
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