Do grupo de países onde nascer pode ser considerado um azar, um deles é a Birmânia. A ex-colónia britânica, uma das jóias da coroa do império, foi governada desde 1962 até há pouco tempo por uma junta militar infame, que oprimiu o povo birmanês, limitou direitos fundamentais como a liberdade de expressão ou de associação, governou com mão-de-ferro e obliterou qualquer forma de oposição interna. Nem a censura dos organismos internacionais ou os sucessivos embargos económicos intimidaram os generais da junta, e dos que tentaram corajosamente mas em vão mudar o país nasceu um mito: Aung San Suu-kyi, filha de Aung San, um dos heróis da independência do país. Suu-kyi esteve em prisão domiciliária durante 15 anos, foi laureada com o Prémio Nobel da Paz e tornou-se o símbolo da resistência contra a junta em particular, e da luta contra todas as formas de opressão em geral. Entre algumas das decisões tirânicas da Junta, a maior parte com consequências para a população, amordaçada e empobrecida, as mais curiosas foram certamente a mudança do nome do país para “Myanmar”, que é agora a designação mundialmente reconhecida, em vez do mais musical e menos exótico “Birmânia”, ou “Burma”, em inglês, Há alguns anos, temendo uma intervenção militar no sentido de derrubar o regime, mudaram a capital de Rangum – que a par de Mandalay sera a cidade mais conhecida pela generalidade dos estrangeiros – para um sítio com um nome impronunciável: Naypyidaw. Fossem apenas esses os “pecados” da Junta, e seriam os birmaneses muito mais felizes. O pior foi mesmo a forma tirânica com que os destinos do país foram conduzidos durante quase 40 anos.
Como não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe, a junta decidiu em 2010 levar a cabo uma série de reformas democráticas progressivas. Não que realmente lhes apetecesse largar a chucha do poder, mas terão finalmente chegado à conclusão que seria melhor exercê-lo em democracia do que serem eventualmente obliterados e deitados ao tapete, não podendo depois encontrar sequer um trabalho a limpar latrinas. Assim em 2011 foi aprovada uma nova constituição, Aung San Suu-kyi foi finalmente libertada, e em 1 de Abril do ano seguinte as primeiras eleições livres. Foi no primeiro de Abril mas não era mentira: os birmaneses podiam finalmente eleger os seus representantes em liberdade. Mas se foram “livres”, estas eleições não foram de modo algum transparentes, com a Junta a vencer com uma margem confortável, acusada de coação e manipulação de resultados. Pelo menos o ar que se respirava era menos mau, Suu-kyi passou para a oposição, que agora pode fazer sem arriscar ser presa, e quem sabe se nas próximas eleições se consomam as reformas democráticas.
Se aparentemente a Birmânia encaminha-se para um sistema mais compatível com a modernidade, a liberdade adquirida começou a trazer outros problemas. Pouco depois das eleições deram-se os distúrbios do estado de Rakhine, no noroeste do país, onde a maioria budista do país atacou elementos da minoria Rohingya, uma etnia de origem Bengali muçulmana cuja população na Birmânia anda por volta dos 800 mil – birmaneses, como todos os outros, mas considerados indesejáveis pelos restantes. Os confrontos de Junho foram o culminar de semanas de mal-estar, e resultaram em 80 mortes e mais de um milhar de refugiados. O país estava agora a braços com um novo problema: o ódio religioso e étnico. Alguns politólogos reconhecem que uma das poucas vantagens de um regime totalitário é o de não tolerar divisões internas que coloquem em causa a segurança, mesmo que a autoridade seja exercida pela opressão. A Junta conseguia, apesar de tudo, manter uma certa unidade e paz civil, apesar da miséria e do descontentamento. Chegou a tão ambicionada democracia, e com ela a liberdade de poder partir a cabeça ao vizinho se não gostarmos dele. Os que avisam para os perigos de “demasiada liberdade” apontam para o exemplo. Ali ao lado, na China, um outro regime muito criticado pelos amantes da democracia aponta o dedo e reclama: “estão a ver como é?”.
O ódio que leva a que se semeie o terror no oeste da Birmânia tem um rosto, como não podia deixar de ser. Ashin Wirathu, um monge budista que através dos seus discursos inflama os seus seguidores, apelando à violência contra os muçulmanos no país. Wirathu era um preso politico, que depois de ver as portas da prisão abertas pelos ventos da democracia, regressou às lides monásticas e angariou uma respeitável legião de admiradores. Os seus discursos – muitos disponíveis no YouTube – são revestidos de uma radicalidade que lhe valeram a alcunha de “Bin Laden burmês”. Tudo isto apesar do próprio se considerar apenas um “monge pacifico”, que abomina a violância e se opõe ao terrorismo. No dia 20 a revista Time, sempre na linha da frente da reportagem global, fez capa com Wirathu, e não foi nada gentil com ele. Na capa lê-se “a face do terrorismo budista”, o que perante os factos pode não parecer assim tão exagerado. Um personagem que deixa confuso quem acredita que o Budismo é a “religião da paz”. E o que diz o Dalai Lama de tudo isto?
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