terça-feira, 11 de junho de 2013
Da praça Taksim para o mundo
Quem tem seguido com mais ou menos atenção o que se tem passado na Turquia fica com uma inevitável sensação de “déjà vu”. A praça Taksim, a maior e mais conhecida de Istambul está ocupada desde 28 de Maio por milhares de turcos descontentes com o governo e com o primeiro-ministro Recep Erdogan. Isto de ocupar praças tem o que se lhe diga, e a História recente comprova a eficácia deste tipo de sublevação popular. Em 1989 foi Tiananmen, com o movimento estudantil que ocupou o centro de Pequim a ser esmagado pela força, e há três anos foi a Praça Tahrir, no Cairo, onde a vontade popular prevaleceu e derrubou o regime de Mubarak. Agora na Turquia é difícil que o desfecho seja um de três; ora o Governo cai, como no Egipto, ora o Governo usa a força, como em Pequim (e espero bem que não), ou Erdogan dá o braço a torcer e recua nas suas intenções de impôr a legislação restritiva que causou a ira de grande parte da população. É improvável que os ocupantes da praça se aborreçam e vão para a casa, deixando tudo na mesma como a lesma. Algo vai sair dali, certamente.
E tal como qualquer outra pessoa com o mínimo de bom senso e cultura democrática, estou do lado do povo turco. A Turquia, outrora o Império Otomano, tem um passado imenso de que nem todos os turcos modernos se orgulham. Quando em 1923 a moderna República da Turquia foi fundada, o presidente Mustafa Kemal “Ataturk” estabeleceu o secularismo, a separação total do estado e da igreja. Sendo o Islão a religião mais praticada na Turquia, isto implica que os cidadãos deste país não estão sujeitos aos rigorosos preceitos do Islão no seu dia-a-dia, mesmo nos aspectos mais curriqueiros, como acontece em tantos países islâmicos por esse mundo fora. Os turcos orgulham-se deste secularismo e levam-no muito a sério. Quando o ayatollah Khomeini do Irão visitou a Turquia, era obrigado a retirar o turbante cada vez que entrava num edifício governamental, só para ilustrar a forma decidida como os turcos cumprem a regra, não abrindo qualquer tipo de excepções. Mas como não há bela sem senão, este sistema incomoda os mais conservadores, que condenam o “excesso de liberdades” e a “indecência” derivados de não se poder puxar do Corão para que as mulheres se tapem ou os homens não bebam álcool. Por incrível que pareça, há ainda quem não fique satisfeito com o que tem e prefira a lei do chicote. Deve ser masoquismo.
Mas os adeptos da burkha não serão assim tão poucos, pois certamente que Erdogan e o seu governo não terão acordado um dia com vontade de impôr leis que contrariam a matriz secular do país. Restrições ao consumo de bebidas alcoólicas e às manifestações de afecto em público por parte de casais terão origem na pressão de grupos clericais e outros paladinos da moral e dos bons costumes. A decisão de demolir o popular parquet Gezi para lá construir uma mesquita, uma decisão tão absurda que é difícil de entender, foi apenas a última gota. O Irão pode ser mesmo ali ao lado, mas muitos turcos darão graças a Alá por existir a fronteira. Pessoalmente não acredito que depois de dez anos no poder Erdogan tenha tido algum acesso de loucura ou esteja embriagado pelo poder e tenha finalmente cumprido uma agenda, pensando ser esta a altura certa. Já ficou provado que não é, e dificilmente chegará a hora que os turcos aceitem estes atropelos às suas liberdades.
Infelizmente assistimos um pouco por todo o mundo a uma espécie de retrocesso humano. Depois de cinco mil anos de civilização já tinhamos a obrigação de entender que somos todos uma grande “tribo” e que nos deviamos dar todos bem, respeitar o nosso vizinho e deixar cada um fazer a sua vidinha da maneira que achar melhor, desde que não chateie ninguém. Em Singapura o governo tomou a controversa medida de obrigar os bloggers a registarem-se e obter autorização oficial para manter a sua página. Não é nenhum segredo que a cidade-estado exerce um apertado controlo sobre os media, e os singaporeanos vão tolerando a branda censura, felizes com o funciomanto das instituições, que lhes é proporcionada e permite que Singapura apareça nos lugares cimeiros das listas que avaliam os indices de qualidade de vida. Mas com este receio das redes sociais e da opinião independente, o Governo demonstra sinais de fraqueza. Pensarão que o povo é tão ignorante que não consiga pensar pela própria cabeça, e vá atrás do que escreve qualquer maluco? Terão medo que a sua gente pense pela própria cabeça ou vá atrás de “agitadores” e por isso acha que precisa de lhes ensinar a distinguir o bem do mal? E porque carga de água ficariam os singaporeanos satisfeitos apenas com a informação autorizada? Se há algo para que os blogs e afins contribuiram foi para poder olhar o mundo além do que nos diz a imprensa. Ficamos a saber mais, e o saber não ocupa lugar.
Mesmo em pleno século XXI, com toda a tecnologia que nos leva a ter o mundo à distância de um clique, de tudo o que nos aproxima, existem ainda paradoxos que em nada abonam a favor da alegada inteligência superior da espécie humana. Desde estados ultra-zelosos que limitam o acesso à informação, com medo que o poder lhes fuja das mãos, até outros que censuram websites porque trazem a fotografia de uma mulher de calções. Serão estes tipos tão crentes ao ponto de pensar que depois de vermos um elefante à nossa frente basta tapá-lo com um Kleenex e depois convencerem-nos que não está ali elefante nenhum? Muito boa gente critica os Estados Unidos devido à sua arrogância imperialista, culpando-os de todos os males do mundo, mas se há algo em que os norte-americanos sã o exemplares é no exercício das liberdades individuais dos seus cidadãos, que têm neste particular todas as garantias. Ali ninguém brinca, e um qualquer Erdogan ia de carrinho. Podem não ser perfeitos, mas grande parte do resto do mundo tinha muito que aprender com eles no que toca ao respeito por certos valores.
Todos queremos um mundo melhor para nós e para os nossos filhos, um mundo onde tenhamos a liberdade de ir onde muito bem nos apetece com quem bem enterdermos, pensar e exprimir-nos livremente sem precisar de policiamento ou de dar satisfações a ninguém. A função protectora e preventiva das autoridades – composta por outros cidadãos como nós, com os mesmos direitos e deveres – deve limitar-se a que estas liberdades possam ser exercidas em segurança. Não preciso que a polícia ou o estado cuidem de mim, ou que me limitem os movimentos para me “proteger”. Sou apologista incondicional do livre arbítrio, e existem leis que sou obrigado a cumprir e consequências caso quebre as regras. E tenho e plena consciência disso. Portanto toca a deixar o sonho voar, e se houver chatice, depois logo se vê.
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