sexta-feira, 31 de maio de 2013

Vão-se lixar! (que eu estou a trabalhar)


É sexta-feira, e como já é habitual, encerro a semana com a publicação do texto da edição de ontem do Hoje Macau. Bom fim-de-semana!

Ia eu a caminho do trabalho no outro dia de manhã, quando ao passar pela Rua da Tercena, aqui perto de casa, quase tomo o segundo banho do dia. Uma funcionária da tal concessionária do tratamento dos resíduos de Macau lavava alegremente um depósito de lixo a golpes de mangueirada, alheia ao facto de serem nove da manhã e estarem por ali a circular pessoas a caminho dos seus afazeres diários. Protestei com o seu desleixo, e apesar de fazer bastante calor, dei-lhe a entender que não estava nada interessado em ser “refrescado”. Não fiquei sem resposta, e de peito feito a profissional da limpeza de caca das lixeiras atirou-me com um decidido: “este é o meu trabalho!”. Ora pois é, ninguém disse que não, e toca já a sair da frente. Quem não gosta pode muito bem fazer um desvio por outra rua qualquer, de preferência pelo bilhar grande, que foi para onde a senhora me mandou ir dar uma volta.

Ainda a semana passada esperava por um autocarro na Av. Almeida Ribeiro, na paragem em frente a uma conhecida ourivesaria junto da Rua Camilo Pessanha, eram já onze da noite. Enquanto conversava com uma amiga aproxima-se uma daquelas recolectoras de cartão e outros objectos empurrando um volumoso carrinho de mão, que me passa em cheio por cima do pé. Não me partiu nenhum osso, mas a dor foi suficiente para lhe dizer das boas, recorrendo ao uso das pragas que o meu parco conhecimento da língua chinesa ainda me permite. Visivelmente assustada com a minha (justificada) reacção, teve o desplante de dizer que a culpa era minha, pois enquanto levava o carrinho vinha dizendo “kuan soi” – literalmente “água quente”, uma expressão utilizada para avisar quem se encontra pelo caminho de que se transporta algo pesado ou perigoso. De nada adiantaria recordar-lhe que o passeio é público, e de que tenho o direito de ali permanecer o tempo que me apetecer sem levar em cima com o entulho que estes recolectores de pacotilha insistem em transportar em qualquer sítio e a qualquer hora. Afinal vivemos numa cidade desenvolvida e cosmopolita. Mas haverá quem tenha assistido à cena que considere que o mau da fita era eu. Afinal a senhora estava a “trabalhar”, coitada, mesmo que ninguém a obrigue a tamanha empreitada.

Voltando à Rua da Tercena. Mesmo antes de chegar à Rua dos Ervanários, no passeio onde se realiza diariamente uma espécie de Feira da Ladra, existe uma pequena loja que compra o cartão que tantos residentes passam o dia a juntar, e que depois vendem “a vinte avos a tonelada”, como disse um conhecido pré-candidato às próximas eleições legislativas, entrevistado há poucos dias na Rádio Macau. Muitas vezes os carrinhos onde o cartão é empilhado ficam estacionados há porta deste receptador, bloqueando por completo a via pública reservada aos peões, obrigando-os a passar pela estrada. Não adianta protestar ou sequer resmungar, pois isto “é gente que trabalha”, que ganha o pão com o suor do rosto, que anda por aí a enfiar a cabeça nos latões do lixo, a separar o cartão no meio do passeio, a levar o ferro-velho pela rua, tantas vezes riscando automóveis ou ameaçando a integridade física dos restantes transeuntes. Não temos outra alternativa senão respeitá-los, e o melhor é sair da frente se temos amor às canelas e aos tornozelos. Qualquer dia equipam o utilitário com uma sirene que assinale a sua nobre labuta. Se não há fome em Macau, como dizem, a imagem que se passa para quem assiste a este triste espectáculo é outra. Como se explica que alguém se sujeite andar por aí imundo a carregar toneladas de tralha pela rua o faça para ganhar mais alguns trocos apenas “para passar o tempo”?

A falta de civismo e o desrespeito pelo conceito do “outro” não se resume a estes apanhadores de cartão e ferro-velho. A própria recolha do lixo, feita pelos camiões da tal concessionária num horário que ninguém conseguiu ainda entender muito bem, é uma boa desculpa para se fazer um escarcéu, com latões arremessados e um cheiro pestilento no ar. Quem tem o azar de estar na rua à hora da recolha do lixo ou de estar a conduzir atrás do camião do lixo, fica com o estômago revirado e adquire uma tez amarelada nada saudável. Mas querem o quê? Os tipos estão ali a recolher o vosso lixo, deviam era estar agradecidos. É um trabalho sujo mas alguém tem que o fazer. As cargas e descargas, um problema comum a muitas cidades, adquire uma dimensão muito própria em Macau. Os veículos de carga estacionam onde muito bem lhes apetece às horas que bem entendem, e não saem dali até que a estiva fique completa. Pouco importa que obstruam o trânsito e provoquem congestionamentos – é um “mal necessário” – e não adianta buzinar ou fazer cara feia. “O que foi, pá? Têm pressa, passem por cima. Não vêem que estamos a trabalhar?”

Quem foi abençoado com o dom da paciência, o que não é o meu caso, aceita melhor este tipo de situações que tantas vezes nos deixam com os nervos à flor da pele. Afinal somos uns sortudos, passamos o dia sentados num escritório, com uma secretária só para nós em frente a um computador, com ar-condicionado num ambiente salúbre e rodeados de conforto, gente bonita e limpinha. Deviamos ser mais compreensivos com quem ganha a vida na rua, sujeito aos rigores do clima e à poluição enquanto efectua honestamente o trabalho sujo e pesado, indispensável a todos nós e ainda por cima mal pago. Nada contra estes operários que suam e contribuem da forma que podem para o bem comum, mas isto não pode nem deve ser uma desculpa para o caos. Rejeitar este estado de coisas não significa necessariamente estar a faltar ao respeito com estes esforçados profissionais. Trata apenas de pedir que o respeito seja mútuo. Numa cidade organizada e funcional existem horas e lugares para tudo, e não devemos encarar os incómodos a que tantas vezes nos sujeitamos como qualquer coisa de inevitável e sem solução. Com um pouco mais de vontade, havia mais qualidade de vida. E tínhamos todos a ganhar com isso.

3 comentários:

  1. Meu amigo, se fossemos falar de civismo a recolha de lixo estaria bem lá no fundo da lista.

    Cuspidelas no chão por todo o lado, deitar lixo para o chão (mesmo com caixote do lixo por perto), falar aos berros ao telefone à frente de toda a gente, passar à frente nas filas dos autocarros e taxis, empurrar tudo e todos nas ruas, lojas, elevadores, entradas dos autocarros, etc (sem nunca pedir desculpa), urinar e defecar em locais publicos, colocar os pés descalços em cima dos bancos dos autocarros, cuspir os ossos e espinhas em cima da mesa e chão nos restaurantes, enfiar o dedo no nariz e unha no ouvido para limpar e depois esfregar na toalha ou na parede, fumar desenfreadamente mesmo em locais proibidos, interromper a conversa quando se está a pedir informações numa loja ou departamento publico, deitar café/chá/água para os sacos de lixo para depois ficar tudo a escorrer pelo chão misturado com o lixo....

    Isto são tudo cenas que temos de aguentar diariamente dos turistas continentais chineses (não só mas maioritariamente) dos quais infelizmente dependemos. E você queixa-se dos desgraçados que vão recolher o lixo??

    Eles são uns anjinhos comparados com esta gente..

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  2. Sim, meu caro, mas esses que referiu são os turistas, que chegam e vão embora. Mas estes são de cá. Qual é a desculpa deles? :)

    Cumprimentos

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  3. Vão embora uns, vêm logo a seguir outros tantos, iguais ou piores :(

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