terça-feira, 19 de março de 2013

Quando o Diabo pisca o olho


Faz-me imensa confusão quando oiço os mais velhos tecer rasgados elogios a Salazar. São os tais saudosistas, que felizmente vão sendo cada vez menos. Mais confusão ainda me faz quando oiço malta nascida após o evento da democracia a elogiar Salazar. É uma das situações em que se fala sem conhecimento de causa que mais pena dá. É lamentável que se suspire pelo ditador santacombadense, por muito mal que esteja a nossa situação actual. Um dia ouvi um jovem dizer que “O Estado Novo não era mau, o problema era a PIDE”. Pois é, era a PIDE, o analfabetismo, o atraso estrutural, a interioridade, a emigração em massa, a Guerra Colonial…querem mais? Alguns nostálgicos de pacotilha recordam com carinho o tempo em que “cem escudos lhes duravam uma semana”. Mas confessem lá, não havia muito por onde gastar esses cem mil réis pois não? “Uma bica custava 20 tostões!”. E depois? Com os tais cem escudos podiam beber 500 bicas, pronto, valia-vos isso. Na realidade Portugal era ainda há 30 anos um país bem atrasadinho, onde ir de Lisboa ao Porto demorava um dia inteiro, e o interior estava completamente isolado e era virtualmente inacessível. Agradeçam ao sr. Salazar. “Orgulhosamente sós”, pois então.

Mas eu até compreendo esta espécie de verborreia própria da natureza humana. Muitas vezes chegamos a um ponto da nossa vida em que o nosso julgamento fica completamente distorcido, e damos por nós a lutar no lado errado da luta. A História é pródiga em situações deste tipo, algumas que teimam em persistir nos dias de hoje. Muitos chegam a apoiar ideologias atrozes ou ditadores sanguinários. A experiência leva-nos muitas vezes a olhar para trás e abanar a cabeça desabafando em voz alta: “O que estava eu a pensar”? Claro que a consciência pesa muito menos se fomos apenas apoiantes passivos ou meros simpatizantes, mas o caso muda de figura se fomos também cúmplices. Nesse caso pode ser que nos venham pedir para prestar contas.

Lembrei-me de escrever este artigo quando soube da notícia de um alegado apoio do novo Papa Francisco I ao regime do ditador argentino Jorge Videla, o que muitos consideram “condenável” e pouco digno do líder da Igreja Católica. Ora esta cumplicidade entre Igreja e regimes não-democráticos é antiga, e tudo depende de factores como ideologia do regime em causa, da qualidade da sua relação com o clero, enfim, tudo a ver com a política dos homens e muito pouco a ver com Deus. Já o Cardeal Ratzinger tinha sido acusado de pertencer à Juventude Hitleriana, cuja afiliação tinha carácter de obrigatoriedade. Bento XVI terá feito pouco mais que um escoteiro faria nos dias de hoje, mas muitos imaginaram-no a mandar pazadas de judeus para o forno. Uma simples nota de rodapé no currículo que inclua Hitler ou qualquer relação com o Reich vale o rótulo de “nazi”.

É comum procurar esqueletos nos armários de líderes mundiais ou personalidades queridas da maioria. O próprio João Paulo II, ainda recordado e acarinhado por qualquer católico que se preze, tinha relações cordiais com figuras suspeitas, e a Madre Teresa de Calcutá, um poço de virtudes para quase todos, aceitava contribuições de ditadores como Pinochet ou Marcos. Gandhi, tido como um “santo” para os indianos, foi acusado de racismo durante o tempo em que exercia advocacia na África do Sul, e diz quem o conheceu que era um “tarado sexual”. Mesmo o Dalai Lama, líder espiritual do Budismo, é frequentemente acusado de utilizar a religião com fins politicos pouco claros e de valência discutível. Fica sempre bem remexer no passado de alguém normalmente acima de qualquer suspeita, e encontrar impurezas que o tornem menos imaculado. Quanto mais imaculada a personalidade e mais “sujo” o segredo, melhor. Mais vende.

Por vezes as nossas expectativas são defraudadas. É impossível prever o futuro ou ler as verdadeiras intenções de alguém aparentemente bem intencionado. Com toda a certeza uma grande parte dos alemães que elegeram Adolph Hitler arrependeram-se depois, isto apesar de ainda hoje o führer ter apoiantes entre as gerações do pós-guerra. Álvaro Cunhal pelava-se por Estaline, e muitos dos dirigentes do PCP comungavam da admiração do seu secretário-geral e líder histórico por aquele que foi simplesmente o maior assassino da História. Uma elite de intelectuais europeus apoiou o movimento dos Khmer Rouge no Cambodja, que viria a revelar-se um dos regimes mais sangrentos de que há memória. A fundação da República Popular da China por Mao Zedong foi encarada com optimismo por muitos, e o pensamento maoista inspirou muito boa gente por esse mundo fora. Durão Barroso foi maoista na juventude. Como o próprio Mao afirmou um dia: “Os heróis de hoje são os vilões de amanhã, e os vilões de hoje os heróis de amanhã”. Não podia ter dito melhor. Foram muitos os equívocos que no início colhiam simpatias de vários quadrantes e que no fim custaram milhões de vidas humanas.

Depois há os enganos que até não custam assim tanto a corrigir. Soubessem o que sabem hoje, e os eleitores brasileiros não teriam confiado em Collor de Mello. Quem ia adivinhar que aquele “pintarolas” bem falante era um corrupto do piorio? O mesmo se pode aplicar aos benfiquistas que depositaram a sua confiança em José Vale e Azevedo, e que ainda hoje se sentirão meio envergonhados. Mas estes são erros que se podem emendar facilmente, contando que exista um sistema democrático e pluralista que o permita. Se estamos desiludidos com os politicos que nos governam actualmente, mesmo que tenhamos votado neles e nos sintamos enganados, é só ir às urnas da próxima vez e trocá-los por outros. Com Salazares, regimes musculados e outros partidários do “come e cala-te” é que não há mesmo nada a fazer. Não faz mal ter errado. O pior é insistir no mesmo erro.

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