domingo, 24 de março de 2013
O sonho aqui ao lado
Quando andava no ciclo preparatório tirava sempre boas notas a Música. Um pouco sem saber como, pois na realidade para mim a música é um verdadeiro mistério. Gosto de música, ouço música, mas não sei como se faz. Não sei ler música, não toco qualquer instrumento, nem sequer tenho unhas para tocar guitarra. A música para mim é como a água que sai da torneira: é bom tê-la, e pouco importa saber de onde vem. O meu pai olhava para as tais boas notas a Educação Musical com apreensão, e dizia meio a brincar que eu “lhe estava a dar música”.
Na realidade os tempos hoje são outros; antigamente era quase uma tragédia ter um músico na família. Os músicos eram potenciais pindéricos, condenados à esmola. No tempo dos nossos pais e avós era importante aprender um ofício, e a profissão de músico – bem como a de qualquer outro artista – era considerada “marginal’. Actualmente, e com o evento da indústria discográfica que gera milhões, os pais estimulam o talento musical dos filhos, se o têm, e até não se importam de lhe comprar instrumentos e deixá-los tocar na garagem com os amigos. Vistas as coisas, o mercado de trabalho é cada vez mais um mundo cão, e se há alguma coisa que aprendemos nesta vida é que nem sempre se chega longe estudando muito e trabalhando duro. Aliás, sem outros expedientes menos ortodoxos, chega a ser uma tarefa quase impossível.
Se antes era condenável um jovem ambicionar a uma carreira nas artes, fosse na representação, na música ou outra, hoje isto é visto como uma escapatória, um “sonho”. Da forma desenfreada como se sucedem os talentos “a la minuta”, gerados pelos “reality shows”, concursos de talentos e outra tralha televisiva, é fácil perceber que a mentalidade vigente é agora outra: isso de acordar cedo e trabalhar duro é para tansos. O que está a dar é a fama e o estrelato, custe o que custar. Isto sem falar do futebol, outra “indústria” apetecível. Se antes os miúdos levavam porrada quando chegavam a casa tarde depois de ter ficado a jogar à bola com os amigos, hoje são quase mandados a dar chutos na bola pelos pais. Se o jovem tem jeito para a bola, é quase colocado num pedestal, e pede-se que se aplique nos treinos. Um puto que não goste de futebol, seja qual for a razão, é considerado “afectado”. Já não faz tanto mal se tiver talento para outra arte qualquer, desde que seja lucrativa e lhe permita uma certa independência. Trabalhar num escritório e ser pau-mandado de alguém é que não. Engenheiro? Médico? Já há tantos. Advogado? Professor? Não queremos ver os nosso filhos na penúria, pois não?
Voltando à música e aos músicos. Conheci durante a minha juventude muitas das tais “bandas de garagem”, e por acaso nenhuma deles teve sucesso ou produziu algum músico que tenha singrado. A malta juntava-se depois das aulas, dava um ou dois concertos por ano, inscrevia-se nos (poucos) concursos que existiam, a coisa não dava e depois ia cada um à sua vida. Em cada cem bandas que aparecem haverá uma que sairá do anonimato ou gravará um disco. Não é fácil aparecer com material original, e os “hit singles” não aparecem do dia para a noite. Com o surgimento do fenómeno “pimba”, abriu-se uma porta a certos artistas que não eram conhecidos do grande público (ie: os que compram discos), mas para optar por esta via é necessário abdicar de certos princípios que um bom músico que se preze nunca abdicaria. A dignidade, por exemplo, é posta de lado, e o gosto musical passa a ser um conceito “relativo”. Em suma, é preciso ter uma grande lata.
Em Macau, como em qualquer outro sítio do mundo civilizado e fora da esfera dos talibã, existem bandas amadoras. Nos tempos da administração portuguesa existiam até bandas portuguesas, gente com gosto pela música que arranhava umas cordas como passatempo, mas exercia outra profissão durante a semana. Chegou mesmo a gravar-se uma colectânea em CD com essas bandas lusas, que se a memória não me atraiçoa, era intutulada “Macau mou-man-tai”. Mesmo os expatriados que ficaram por Macau e se assumem como músicos por vocação têm outro ganha-pão. Ser músico profissional é um privilégio reservado à Orquestra de Macau, sob a alçada do Instituto Cultural, e não consigo pensar noutro exemplo além deste. Pode-se fazer música de forma séria, e até vendê-la, trabalhar num projecto ou outro, um biscate que surja, mas para pagar as contas é melhor ter um emprego fixo.
E onde está o mercado para os músicos da região? Em Hong Kong, claro. Uma cidade com sete milhões de habitantes, estúdios de gravação dignos desse nome, salas de espectáculos com capacidade para milhares de pessoas, produtoras discográficas e empresários que se dedicam a tempo inteiro à indústria musical, Hong Kong é o sonho de qualquer músico de Macau que ambicione a uma carreira. Penso que a maioria dos leitores tem uma ideia do que se faz em Hong Kong em termos de música. É sobretudo “pop”, daquele muito previsível e chochinho, e sempre cantado em cantonês. Como o gosto é o que sabe, alguns destes artistas da RAEHK gozam de uma popularidade enorme, e têm uma legião de seguidores. Dão concertos que enchem estádios, fazem filmes e são presença assídua em “shows” da ATV e da TVB, os canais-empresa televisivos da região vizinha. A fama leva ainda a que vão para a cama com imensa gente, como ficou demonstrado no caso Edison Chan, há alguns anos.
De Macau contam-se pelos dedos de uma mão os artistas que foram para Hong Kong tentar uma carreira de sucesso. O exemplo mais conhecido é o dos gémeos Acconci, Dino e Júlio, dois músicos talentosos que formam a dupla “Soler”, conhecida dos dois lados do Rio das Pérolas. Os irmãos Acconci são músicos talentosos que estudaram e levaram anos a aperfeiçoar o seu reportório. A música que fazem é mais inclinada para o “rock” puro, e não tanto para o “canto-pop” honconguês, e talvez por isso não sejam considerados artistas de topo na região. O público de Hong Kong tem também uma costela “pimba”, na sua versão chinesa. Outro exemplo, este mais recente, é o do cantor macaense Germano Guilherme, vulgo “Bibi”, que conhecemos das peças em patuá dos Doçi Papiaçam di Macau. Germano tem uma voz fantástica e uma presença forte – é um verdadeiro “animal de palco”. Em suma, tem “star quality”, um potencial enorme. Se ainda não mostrou o que realmente vale, é apenas porque a “indústria” pede aos artistas mais do que apenas talento. Existe, além do “timing”, sempre importante, um sistema do tipo “teia”, compost de padrinhos, concessões, decisões “políticas”, traições e outras intrigas palacianas. Quem não passa por esta “recruta” dificilmente chega longe.
É sempre interessante quando um natural de Macau chega longe no mundo artistico, e só é pena que os casos sejam muito raros. A exiguidade do território e o carácter pragmático e fechado da sua população não permite que brotem muitos talentos. Um jovem que tenha dentro dele uma pequena “semente” de jeito para o “show business” é oprimido e levado a deixar essa tendência para segundo plano. Alguns pais gostam de inscrever os filhos em escolas de música, teatro ou ballet, e mesmo em alguns casos contra a vontade dos miúdos, mas isto é sempre visto como um “extra” que dá para tirar umas fotografias giras durante as apresentações anuais que justificam a propina que gastam nas aulas semanais. O mais importante é que não se distraiam dos deveres escolares. Os pais mais “românticos” que sonham com o “estrelato” dos filhos também ficam um pouco sem saber o que fazer. Não lhes é dada qualquer outra referência além desses artistas pirosos de Hong Kong, e tal como na cultura geral, a cultura musical é também muito fraquinha. Mas fica tudo em casa, pronto, e são felizes assim…
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