sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

O pão nosso de cada dia


Quem já viveu em Portugal sabe o que é pão a sério. As padarias portuguesas correspondem escrupulosamente às expectativas no que toca à produção do “corpo de Cristo”, e o ritual de “ir ao pão” é quase tão natural como lavar os dentes – creio mesmo que a higiene oral reveste-se de menos importância que uma ida à padaria. Qualquer padaria de bairro, desde que não tenha muita concorrência, é um negócio sempre viável, e a profissão de padeiro uma das poucas imune a qualquer tipo de crise. Toda a gente precisa de pão.

Quando era miúdo chegava a ir à padaria ainda antes dos primeiros raios de sol, visto que no Inverno ainda é noite cerrada às sete das manhã, hora em que as cidades normalmente despertam para mais um dia. Enquanto os cidadãos dormem, os padeiros trabalham, amassando o pão antes de o levar ao forno, um processo solitário, silencioso e antigo, tão respeitado que nem se levantam dúvidas sobre a sua legitimidade. O pão é um alimento imune a qualquer ideologia: em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão, como diz o povo, e muito bem. Mesmo o produto do trabalho, o salário, confunde-se com o pão: “ganhar o pão”, acrescentado na versão cristã “com o suor do rosto”. O melhor é evitar esta confusão de “pão” com “suor”, para não perder o apetite.

Adorava passar pela padaria pouco depois de sair o pão. A caminho de casa “mamava” pelo menos um ou dois papo-secos quentinhos, apesar da reprovação do meu pai, que considerava o acto de comer “pão com dentes” um sinal de pobreza. Nunca me inibi de comer enquanto andava na rua, e pouco importava que fosse um simples papo-seco ou um mais elaborado bolo. Falando em “papo-seco”, é interessante esta forma como se designa os pães que convencionalmente chamamos “carcaças”; “papo-seco” faz-me lembrar pão, e não uma qualquer barriga desidratada. Um “papo-seco” é um pãozinho arredondado com uma rachinha no meio e um salpico de farinha que lhe confere um aspecto “sexy”. É a modalidade de pão mais praticada em Portugal, de norte a sul.

Éramos uma família de quatro, pelo que o consumo diário dos tais “papo-secos” era na ordem de pelo menos 10 por dia, e mais aos fins-de-semana. Ao Domingo, dia de descanso, existia uma padaria mais distante que vendia as “bolas”, uma versão mais compacta do “papo-seco”, que se comia em duas dentadas. Os mais conservadores optavam ainda pelo “pão saloio”, ou “pão de Mafra”, ou ainda o “cacete”, a versão portuguesa da francesa “baguette”. Qualquer coisa servia, desde que servisse de cama à manteiga, ao queijo, ao fiambre, à marmelada ou à compota, conforme o gosto. O acto de levar o pão à boca confunde-se com a própria existência. É o instinto mais primário da humanidade.

Vivendo em Macau há 20 anos fui obrigado a alterar este hábito do pão matinal. É difícil convencer os nativos que o pequeno-almoço – a primeira refeição depois do sono, em que é suposto tratar bem o estômago ainda “adormecido” – deve ser composto por leite, cereais e sumos de fruta, qualquer coisa menos agressiva que a apetência local pelas massas com carne, molhos e picante. As padarias locais oferecem uma gama de sanduíches esquisitas, pães com costeletas de porco ou salsichas com maionese ou outras pastelarias indigestas. “Papo-secos” fresquinhos, nem vê-los. É uma utopia atravessar a rua e comprar carcaças tão frescas que ainda mexem, e já em casa completá-las com queijo, fiambre ou outro conduto.

Claro que temos que considerar as distâncias, e não se pode esperar que os nossos hábitos alimentares sejam cumpridos a 15 mil quilómetros da origem. Tenho pena é que não se invista mais na padaria tradicional portuguesa num território onde a nossa restauração está bem presente. Existem uma ou duas pastelarias locais onde se pode comer um pequeno-almoço “à portuguesa”, mas longe da qualidade a que estamos habituados e a preços quase proibitivos. Só para dar um exemplo, um pão com chouriço “primo” daqueles que comíamos aos Sábados à saída da discoteca em Portugal, às quatro da madrugada e acabadinho de sair, custa numa pastelaria local 25 (!) patacas. Em Portugal o aumento na ordem dos cinco cêntimos é considerado “um assalto”. Assim não há saudade que resista.

A padaria Maxim’s, por exemplo, vende por volta do meio-dia em algumas das suas filiais “papo-secos” acabadinhos de sair, mas que pelo fim do dia vêem a sua frescura original quase extinta, partindo-se em migalhas e com uma textura semelhante à cola. Aprecio o esforço, contudo, considerando que os simpáticos padeiros chineses não têm ao seu dispôr a nossa farinha, o nosso fermento, os nossos fornos. Existe uma padaria filipina na Rua dos Cules que faz sair depois da meia-noite fornadas de “pandesal”, a versão local do nosso papo-seco, mais pequena e adocidada. A partir das 23:30 a fila é tão grande e a produção tão “caseora: que é difícil evitar uma espera de pelo menos uma hora. Aí está o exemplo de um povo que não dispensa o calor do seu país natal. E o que falta para que os tentemos imitar?

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