segunda-feira, 7 de janeiro de 2013
Sua alteza, o porco
Como gosto eu de carne de porco. Gosto especialmente da designação simplista em inglês: “pork”, que torna esta carne ainda mais apetecível. Quando penso em “pork” imagino um lombinho fatiado com molho de cogumelos, ou um fiambre sedoso, dourado, cortado em finas fatias. O porco é não só um animal inofensivo e engraçado, como ainda se come todo, e transformado em enchidos, salsichas, bacon e tudo mais, vai da lei da morte se libertando, e resiste durante mais tempo na cadeia alimentar. O chouriço assado ou a linguiça que comemos hoje é provavelmente originária em parte de um ou mais porcos assassinados no século passado. O bacon e as salsichas – que consumidos diariamente aumentam em 40% o risco de cancro do pâncreas – são o pequeno-almoço ideal, quando devidamente acompanhados de um ou dois ovos estrelados ou mexidos. O porco e a galinha cantam ao desafio enquanto deslizam pelo nosso esófago abaixo.
Como cresci no Montijo, tive a sorte de comer a melhor carne de porco do mundo. Não estou a exagerar. Quando assistia ao futebol no Campo da Liberdade aos Sábados à tarde, conseguia ouvir os grunhos de dor que saíam da fábrica da Izidoro, situada mesmo do outro lado da estrada. Uma vez fui assistir à matança na já extinta GêCê (Gingeira e Carabineiro), e aprendi uma importante lição de vida: a morte está à distância de um choque eléctrico e uma facada na garganta, e o desmembramento à distância de cinco minutos numa esteira de processamento de carnes.
O Montijo foi durante décadas a capital da transformação da carne de porco, uma indústria que empregou sucessivas gerações. Chegaram a existir várias fábricas, e podia-se afirmar com toda a segurança em grande parte do país durante quase todo o século passado que “se era porco, era do Montijo”. Foram quase 80 anos a sair todos os dias de comboio do Ramal do Montijo (antigo Ramal da Aldegalega) carne de proco fresquinha para o resto de Portugal. Isto levava os invejosos vizinhos (principalmente os alcochetanos) a dizer que o Montijo “cheirava a porcos”. Claro que isto é um cabeluda mentira, pois as quintas ficavam a vários quilómetros da sede de concelho, nas freguesias de Pegões e Canha. A única vez que estes ígnaros sentiam o cheiro a porco era quando baixavam as calças. Oinc!
No Montijo existe uma versão única no mundo da tradicional morcela: o chouriço de sangue, mais seco e avinagrado que a morcela comum, e muito mais saboroso. Às sextas-feiras saíam os fresquíssimos torresmos, essa iguaria confecionada a partir de pele de porco, gordura, toucinho e banha fritos, que no auge da sua frescura derretiam na boca, despertavam os sentidos e faziam disparar o colesterol. As salsichas frescas, feitas de carne e gordura de porco recentemente falecido, eram embrulhadas em couve lombarda e toucinho, e baptizadas de “Salsichas à Montijense”. Um prato que faz qualquer Bratwürst ou outra salsicha nazi corar de inveja. Em Macau alguns restaurantes tentaram reproduzir esta iguaria, usando para o efeito salsichas de lata. Sacrilégio!
Consumo todas as partes do porco sem hesitações: a carne, o bucho, os rins, o coração, a mioleira, as tripas, as orelhas, e até os testículos. Tudo mesmo. Com a barriga faz-se o bacon, com a pele fazem-se os deliciosos coiratos, os pés transformam-se em chispe, ou adoptam o diminutivo de “pézinhos” e são acompanhados com uma valente coentrada. Um “joelho de porco” é uma surpresa; quando se pensa em “joelho” pensa-se sobretudo em ossos, mas este em particular é praticamente só chicha! Agarrado ao joelho vem também o resto da coxa. E mesmo os ossos do bicharoco servem para fazer uma deliciosa sopa – chupa-se o porco até ao tutano, a bem dizer. O equivalente suíno dos bifes de vaca são as febras, ou bifanas, que entaladas num papo-seco e com alguma mostarda, e acompanhadas de uma Super Bock, servem tantas vezes de única refeição do dia a noctívagos e outros boémios. Existe uma relação íntima entre a poesia e a bifana.
Na região de Pampanga, nas Filipinas, existe um prato chamado “sisig”, que consiste em orelhas e nariz de porco picados e temperados com um molho de vinagre e piri-piri, servido ainda a fritar numa tábua e posteriormente misturado com um ovo cru. Aliás os filipinos são um dos maiores “gourmets” do porco à escala mundial. Outro prato que tiveram a destreza de inventar é o “dinuguan”, que basicamente consiste de vísceras (pulmões, coração, rins) cozinhadas no próprio sangue do animal, uma versão mais radical da nossa cabidela. Têm ainda um tal “lechon paksiw”, um prato cozinhado com pele de porco cortada rente às costelas, temperado com molho de mel, vinagre e alho.
Existe uma modalidade nestas deliciosas olimpíadas porcinas que tem uma legião respeitável de adeptos: o leitão. O leitão é na realidade um porco pré-púbere, igualmente delicioso e com a vantagem de ser mais tenrinho, pois é colhido antes que comece a comer lavagem e a rebolar na porcaria. Falando da realidade local, o leitão é presença indispensável nos casamentos chineses, servido com um par de cerejas no lugar dos olhos. É o primeiro prato a ser servido, e representa a virgindade da noiva (a palavra”virgem” tem uma pronúncia semelhante à palavra “porco”) e o vermelho dos olhos representa a felicidade. A sua pele crocante cortada em pequenos quadrados é a parte mais apetecível, e com excepção das patas, o resto é praticamente gordura. Deixa muito a desejar, comparados com os leitões lusitanos. Quando visitava as quintas circundantes do Montijo ou a Feira do Porco, que se realizava todos os anos em Setembro no recinto da Montiagri, acariciava os rosáceos leitões, e imaginava-os assados à Bairrada com uma laranja na boca e deitados numa cama de batatas fritas cortadas fininhas às rodelas. A memória destes momentos de ternura é suficiente para me deixar com larica. Onde estão, ó leitões suculentos da minha infância?
O porco enquanto vivo é também um animal interessante, simpático ao ponto de se tornar numa boa companhia, se bem que tem uma tendência para não saber distinguir o bem do mal. Não há fossa séptica ou outra amálgama de matéria excrementosa onde não lhe apeteça mergulhar, e come de tudo, até carne de porco! Isso mesmo, experimentem dar um chouriço ou uma salsicha a um suíno e ele devora aquilo sem ter consciência da sua antropofagia. Uma brincadeira engraçada que se pode fazer com um porco é esticar e de seguida largar aquela cauda engraçada em forma de parafuso, que depois se volta a enrolar, e repetir esta acção dezenas de vezes. Se ele se virar contra si e tentar morder, pode sempre dar-lhe um pontapé nas bolas (que repito, são deliciosas), que ele não lhe guarda rancor. Um jogo tradicional que se realiza em algumas festas populares consiste em ensebar um jovem reco e depois tentar agarrá-lo, aliando a diversão à javardice. O porco é um bom desportista, que veio ao mundo para satisfazer os nossos delírios gastronómicos. Brincar com ele é apenas uma forma descontraída de adiar o seu destino final, que é o nosso prato.
Nem sempre tive uma relação pacífica com a carne de porco. Há alguns anos fiz uma rigorosa (e bem sucedida) dieta que me fez dispensar o suíno durante quase dois anos, tentando seguir os rigorosos preceitos islâmicos e da ortodoxia judaica, ao mesmo tempo que tentava compreender este tabu tão misterioso. Mas em Macau isto é praticamente impossível. Aqui não se dispensa o “fo-toi”, uma versão mais adocicada do nosso fiambre, o “chu-pa-pao”, a famosa sandes de costeleta de porco, ou o “rousung”, ou “pork floss”, aqueles fios castanhos que lembram uma pintelheira ruiva e que aparecem em algumas sandes nas padarias e pratos da cozinha tailandesa. Até alguns bolos e bolachas que se vendem por aí são cozinhados em óleo de porco. A única forma de adoptar uma dieta completamente “halal” ou “kosher” é comendo sempre em casa.
Mas depois deixei-me de merdas e voltei a abocanhar o suíno sem preconceitos, da forma mais pecaminosa possível. Os islâmicos nem sabem o que estão a perder, e não sei como podem ser tão esquisitos, atendendo que em alguns países onde predomina essa religião se passa fome. Como é que se parte desta vida sem ter provado um presunto de pata negra, um entrecosto grelhado, uma bifana, umas bochechas de porco preto, um chouriço assado, um coirato ou uma salada de orelha? É verdade que o porquinho é hóspede de um sem número de parasitas malvados, coitadinho, nomeadamente a maléfica ténia, ou “solitária”, um verme que deposita os seus ovos na carne do suíno e depois germina nos intestinos humanos, originando uma minhoca de vários metros de comprimento. Mas e depois? Basta cozinhar bem a carne para que se mate a ténia. Além disso o risco não é maior do que no consumo de carne bovina e alguns peixes de água doce. Não serve de desculpa.
Por isso vamos agradecer ao criador ou seja quem for que colocou os porcos e a sua família (não falei do javali, esse belo exemplar) no mundo. Olhemos para os rechonchudos suínos com a perspectiva de que podem ser desmontados em várias peças e encher a nossa dispensa. Não desperdicemos um cabelinho que seja, e usemos a nossa imaginação para transformar as partes mais asquerosas em deliciosos pitéus. Vamos disfarçar o sebo e bodum com molhos, temperos, ervas e outras especiarias, sei lá, vamos inventar mil e uma maneiras de morder o bicho sem complexos, chupando os ossos, trincando as peles, besuntando as beiças e chupando os dedos gordurosos. Lembrem-se: quem tem um porco, tem tudo.
Gosto bastante do sisig. Combina muito bem com umas San Miguel
ResponderEliminarUma das postas mais divertidas que apareceram nos ultimos tempos no BO: politicamente incorrecta até à quinta casa e sem os habituais (e quanto a mim injustos) devaneios anti-clericais, vai de badalhoquice em badalhoquice até ao porquíssimo orgasmo. Parabéns! Gostava mesmo de a partilhar no FB. É possível?
ResponderEliminarEsteja à vontade Ludovico. E já agora obrigado, ainda bem que gostou ;)
ResponderEliminarAbraço