quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Quem quer brincar aos advogados?


Por incrível que pareça, há quem me considere um “tipo inteligente”, isto apesar das evidências que provam o contrário. Estas (poucas) pessoas que ainda consigo enganar, sugeriram em várias ocasiões que eu “devia ir tirar o curso de Direito”, que como todos devem saber, está disponível em língua Portuguesa na UMAC, em regime pós-laboral, com a duração de cinco anos. E porque não vou? Simples: não gosto de Direito. Já sei que para muitos estou a blasfemar, mas não gosto, e pronto. Considero que é um curso muito útil, que equipa o indivíduo de uma bagagem importante, prepara-o para muitos desafios que pode encontrar pela vida fora, e é uma actividade potencialmente lucrativa. E depois?

Isto de escolher um curso é como escolher uma mulher para casar: pode ser linda, óptima pessoa, de boas famílias, excelente cozinheira e exímia na cama, mas se não se gosta dela, não há nada a fazer. Além disso considero o Direito uma área muito específica, muito concreta, que não se adapta à`minha natureza diletante. Prefiro saber um pouco de muita coisa do que muita coisa de Direito. E depois quem tira este curso arrisca-se a ser…advogado! Porque haveria eu de querer ser advogado? Lá por ser lucrativo, não me agrada como opção de carreira. Existem outras profissões também lucrativas mas que não me atraem, como o lenocínio, o tráfico de armas ou a prostituição masculina.

Dou a braço a torcer: a advocacia é uma profissão complicada e exigente. É muitas vezes uma luta interior, um conflito constante. Um advogado pode ter a consciência de que o seu cliente é mais culpado que Judas, mas é pago para defender a sua inocência com unhas e dentes. Se vencer um caso que leva a que um facínora ou vigarista saía inocentado dos crimes que cometeu mas não se conseguiram provar, isso deve-lhe causar um enorme amargo de boca, especialmente se for em prejuízo de terceiros. Uma das coisas que mais me irrita da advocacia em particular e da justiça em geral é como um caso simples de fácil resolução pode ser arrastado durante meses ou mesmo anos nas barras dos tribunais. Sinceramente isto não é para mim.

Se dividirmos a humanidade entre os bons e os maus, os advogados “jogam” irremediavelmente na equipa dos maus, e existe literatura e outras formas de arte que o comprovam. O filme “Devil’s advocate” (O advogado do Diabo), com Keanu Reeves e Al Pacino, conta a história de um advogado que é filho do Diabo, que por sua vez também é advogado. A comédia “Liar, Liar” conta com Jim Carrey no papel de um advogado que fica um dia inteiro sem conseguir dizer uma mentira, o que naturalmente lhe torna a vida complicada. Para ser um bom advogado, é preciso ser um bom mentiroso, e quanto mais mentiroso, melhor o advogado. Os meus amigos causídicos que me desculpem, mas isto é um facto. É uma condição “sine qua non”. Mas não se chateiem, pois afinal isto da verdade e da mentira são conceitos subjectivos. Foi Adolf Hitler (que daria um excelente advogado) que disse: “uma mentira contada mil vezes torna-se verdade”. Esta é uma verdade indesmentível, nem que eu precise de o afirmar mil vezes.

Mas muito do que diz dos advogados é pautado por algum exagero, claro. Conheço muitos advogados, são excelentes pessoas e gente do bem, que tratam a advocacia como uma profissão que escolheram para ganhar a vida, e as “sacanices” inerentes a elas como “ossos do ofício”. O meu advogado é também o meu melhor amigo. Tenho essa sorte. Antes de ser advogado já era meu amigo, e no que toca à nossa relação, pouco ou nada mudou. Continua a ser a excelente pessoa que sempre foi – fossem todos os advogados que já conheci como ele. Muitos dos advogados a exercer a actividade no território foram em tempos comuns mortais, que aproveitaram para ir até ao Pac On tirar o canudo de noite enquanto exerciam outra profissão durante o dia. Nestas circunstâncias cinco anos passam depressa, e quem trabalhava na administração, na anterior ou na actual, beneficiava de dispensa do serviço para os exames e tudo. Depois era só preciso estudar, queimar as pestanas, e no final colher os frutos.

A advocacia é ainda uma profissão com boa saída, e basta consultar a página da Associação dos Advogados de Macau (AAM) para constatar esta realidade. Juntando advogados e estagiários, a RAEM terá o maior número de causídicos por habitante no mundo inteiro. Houvessem cá tantos médicos em quantidade e qualidade como há advogados, e respirávamos todos saúde. As consultas eram feitas no próprio dia, operações eram realizadas de um dia para o outro e o tempo de espera nas urgências era de cinco minutos. Existem advogados portugueses e chineses, um sem número de bilingues, e quase todos falam outra língua além das duas oficiais no território. Ninguém se poderá ficar a queixar de falta de representação.

Os advogados portugueses são formados em Portugal ou na UMAC, enquanto os chineses tiraram o canudo em Macau ou noutro país ou território onde não se leciona o Direito vigente em Macau, mas depois frequentam um pequeno curso que lhes dá a equivalência necessária para poder operar na área do Direito local. Seja como for, a triagem é feita depois durante o estágio organizado pela própria AAM, o tal que alguns se queixam ser “muito difícil”. Será difícil para uns claro, e fácil para outros – os que conseguem passar. Muitos advogados exercem ainda a função de Notário Privado (o que é discutível em termos de incompatibilidades, mas adiante), que lhes permite lavrar escritura, fazer reconhecimentos e outros actos notariais. Alguns praticamente só fazem escrituras, e raramente põem os pés no Tribunal. Causa menos aborrecimentos, sem dúvida.

O elevado número de advogados portugueses a exercer no território é de salutar. Os mais pessimistas vaticinavam o fim do Direito de matriz portuguesa do território, mas o cada vez maior número de advogados que chegam todos os anos de Portugal provam o contrário. Apesar das “forças de bloqueio”, o direito em português está para durar em Macau. A maioria da população local ainda olha para o direito chinês com alguma desconfiança, e a diferença entre os dois sistemas jurídicos em termos de historial e credibilidade é verificável a olho nu. Apesar de alguns bem intencionados que não sabem o que dizem, não interessa a Macau nem à sua população que a matriz do Direito de Macau se aproxime da matriz do continente, pelo menos a curto ou médio prazo. Isto de alterar matrizes jurídicas não é a mesma coisa que substituir uma bandeira. Existem alguns detalhes difíceis de contornar, como a falta de tradução adequada de alguns termos jurídicos para a língua chinesa, ou a falta de literatura que sirva de base à jurisprudência chinesa. É um caminho longo a percorrer, e não se podem queimar etapas.

O presidente desta AAM é há vários anos o Dr. Jorge Neto Valente (vénia), residente no território há várias décadas, onde está radicado, e é o jurista mais experiente de Macau – exerce advocacia há mais de 40 anos. O Dr. Neto Valente (vénia) é mais que o presidente da AAM; é a figura de proa do Direito de Macau, sempre atento ao que se passa, nomeadamento à celeridade e eficicácia da justiça, sendo muitas vezes crítico com outros agentes da área jurídica. É conhecida a animosidade do Dr. Neto Valente (vénia) com a Universidade de Ciência e Tecnologia (MUST), que ministra um curso de Direito que não lhe enche as medidas, recusando a inscrição dos recém-formados desta instituição ao estágio da AAM. O Dr. Neto Valente (vénia) está sobretudo empenhado na garantia de um Direito de qualidade em Macau, e no cumprimento dos princípios estabelecidos pelo segundo sistema que vigora na RAEM. Vai ser muito difícil encontrar um substituto ao seu nível. É uma toga enorme a ser preenchida. Vénia.

E é assim mesmo, eu próprio sinto-me seguro vivendo num território onde há praticamente um advogado por 200 habitantes. Apesar disto dar a entender que existe pouco trabalho para tantos advogados, as concessionárias de jogo e outras dão água pela barba, e o que não faltam por aí são litígios, processos, consultas, escrituras e contratos que asseguram o pão na mesa de todos. E porque não me juntei eu a esta fanfarra jurídica? Epá não me levem a mal. Não é que me faltem os tomates, o que me falta é o estômago.

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