sábado, 5 de janeiro de 2013

Democracia de caril


A Índia é um país que sempre exerceu sobre mim um enorme fascínio. A sua diversidade, o seu exotismo, os mistérios que oculta fruto da sua civilização milenar, a sua gastronomia que está entre as minhas favoritas, são todos motivos de sobra para visitar e revisitar este país. Só que infelizmente nunca tive essa oportunidade. Não me apetece mesmo nada ir à Índia sozinho, e ainda não conheci ninguém que quisesse lá ir comigo. A sua fama de território insalúbre e a extensiva lista de vacinas recomendadas para que a experiência não cause dissabores é para muitos dirimente da curiosidade. Mesmo o fascínio que Índia exerce sobre os ocidentais não é em geral partilhada pelos restantes asiáticos. Mesmo para os chineses é um local considerado pobre, atrasado, perigoso e “demasiado diferente” para o seu gosto, e os indianos são vistos com desconfiança. China e Índia, os dois maiores gigantes asiáticos e que juntos constituem quase um terço da população mundial, não partilham muitos pontos em comum além do facto de serem grandes.

A génese da União Indiana, depois de uma história de vários séculos de confrontos bélicos entre reinos e submissão à coroa britânica, foi um dos episódios mais felizes do século XX. Portugal tem uma relação antiga com a Índia, e ocupou até aos anos 60 do século passado três praças do actual território indiano. Perdoem-me a analogia gastronómica, mas o caril é um dos temperos nesse conceito global da portugalidade. Não há indiano que não tenha ouvido falar de Vasco da Gama (se calhar há, mas percebem onde quero chegar), e mesmo o “vindaloo”, um dos pratos mais conhecidos da riquíssima cozinha Indiana, é uma corrupção gramatical da nossa “vinha d’alho”. No recente colóquio sobre a identidade macaense, a Dra. Anabela Ritchie mencionou que a palavra “piri-piri” foi atribuída aos indianos para designar a malagueta porque ouviam constantemente os portugueses a dizer “puta que pariu”. Não sei se isto é mesmo verdade, mas quero acreditar que sim, e tem muita piada. Portugal e Índia partilham uma linda história comum, e eu pessoalmente orgulho-me disso.

O país assumiu-se desde sempre como uma democracia, e é actualmente a maior do mundo como tal. Contudo vários factores de ordem cultural e religiosa impedem que se goze das liberdades inerentes a uma democracia na sua plenitude. A co-existência com o vizinho Paquistão, uma nação que partilha a mesma componente étnica mas é uma republica islâmica, nunca foi pacífica. A tensão entre os dois países conheceu o auge nos anos 60, e chegou a temer-se um conflito nuclear no sub-continente indiano. Actualmente os indianos possuem mais ogivas nucleares que os paquistaneses, na ordem de um para mil, e um conflito é uma hipótese fora de questão – a não ser que o Paquistão queira ser transformado numa panqueca. Contudo existem conflitos graves, nomeadamente na região de Caxemira, comum aos dois países.

Um sistema que vigora na Índia e que é pouco condizente com uma democracia que se preze é o das castas. Um sistema bastante antigo assente em princípios racistas, e que determina à nascença a categoria social do indivíduo. Quem pertence às castas superiores tem a vida muito mais facilitada do que alguém que tem o azar de pertencer a uma casta inferior, que nunca pode aspirar a mais do que uma vida miserável e ainda considerar isto uma fatalidade nata. É difícil integrar este conceito nos princípios universais da democracia, onde supostamente toda a gente nasce com os mesmos direitos. É complicado incutir esta mentalidade numa sociedade onde a religião predominante é a hindu, que apesar da carga mística que colhe junto de tantos ocidentais, é uma das mais radicais e inflexíveis. A mitologia hindu pode até ter o seu encanto, especialmente entre os estrangeiros, mas na prática é impregnada de dogmas que vão contra algumas liberdades individuais que nos são queridas, e que damos como garantidas.

A Índia é muitas vezes notícia e quase sempre pelos piores motivos. Acidentes, atentados, epidemias, muitas vezes com um número de vítimas que seria considerado elevado na maior parte dos países desenvolvidos, mas que na Índia é apenas “normal”. Algumas das imagens que daquele país nos chegam são surreais, e muitas já nem surpreendem. Exemplo disso é a tendência dos indianos em sobrelotar os comboios, ao ponto de centenas deles (senão milhares) aparecerem pendurados nas janelas ou sentados no telhado das composições, o que nos leva a pensar que na Índia há mesmo gente a mais, e comboios a menos. Há alguns anos o filme “Slumdog Millionaire”, que arrebatou os oscares em 2010, mostrou ao mundo um pouco da Índia moderna, através da história comovente de um jovem que triunfa na vida apesar de todas as adversidades, uma história que gostávamos que fosse real e frequente, mas que infelizmente se insere na esfera da ficção e da fantasia.

Uma notícia recente teve contornos especialmente chocantes. Uma mulher indiana de apenas 17 anos de idade foi violada num autocarro por três homens, sofreu lesões cerebrais fruto da violência de que foi vítima e suicidou-se em Singapura, onde foi receber tratamento. Não tivemos acesso às imagens deste hediondo acto, mas podemos imaginar a sua gravidade, ao ponto de levar a jovem a por termo à vida. Depois deste incidente, são várias as notícias de mulheres indianas vítimas de violações na forma consumada ou tentada que circulam na internet. Uma verdadeira epidemia. O episódio que terminou com a morte da vítima no último dia 28 foi notícia em todo o mundo, foi alvo de censura generalizada, e deu origem a um debate sobre a condição feminina na Índia. E faz todo o sentido que se questione e que se debata este tema. Se esta é a maior democracia do mundo, então muito mal estão as democracias se o assunto for ignorado e vetado ao esquecimento.

O problema pode-se resumir a isto: numa nação como a Índia, onde existe uma riqueza imensa que convive lado a lado com uma miséria desesperante, as mulheres e as crianças são o elo mais fraco. Numa sociedade capitalista onde existe ainda a condicionente cultural e religiosa que já referi, vigora a lei do mais forte, e os mais fracos são carne para canhão. Apesar da Índia ser uma economia em ascensão, e onde se produz cada vez mais riqueza, sempre são mais de mil milhões de habitantes, e os excluídos serão sempre na ordem das centenas de milhão. Ao contrário da China, igualmente super-populosa, a Índia não assenta num regime de matriz socialista, e aos que nada têm não resta senão sofrer até ao último fôlego, rodeados por uma sociedade indiferente e dependentes do auxílio humanitário, que vem normalmente de fora e não chega a todos.

A condição de mulher na Índia, já distante da tradição braâmica que obrigava a mulher de um homem rico a ser queimada viva juntamente com todos os restantes pertences terrenos, ainda está longe de ser ideal. Safam-se as actrizes de Bollywood, que levam uma vida rodeada de glamour, e as que têm a sorte de pertencer a uma casta superior, e podem ambicionar aos empregos mais apetecíveis, ombreando com os homens. As restantes auferem de menos direitos que uma vaca, animal sagrado na religião hindu. Ou se casam jovens e ficam a depender de um homem, a bem ou a mal, ou arriscam-se a ser brutalmente violadas num autocarro sem que ninguém tenha o bom senso de impedir uma tragédia deste tipo. Tenho confiança no futuro da Índia, um país que me fascina, mas o caminho que têm a percorrer para justificar o nome de “democracia” que ostentam é longo e sinuoso. Que Vishnu, Ganesh, Shiva ou outro dos deuses do seu imenso panteão os ilumine nessa árdua tarefa.

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