O que não aconteceu
Pois é meus caros, já passa da meia-noite de Sábado, o que significa que já é dia 22 de Dezembro em Macau, grande parte do continente asiático e em toda a Oceânia, e o mundo não acabou! E mesmo onde ainda é dia 21, podem ficar tranquilos, pois se aqui chegámos a 22, vocês também lá chegarão. Mesmo na Meso-américa, de onde são originários os tais Maias, que fizeram a previsão que tem dado que falar. Mas estamos inteiros, era mentira! Salvé, que nos livrámos de boa! Ufa, que eu só tenho 38 anos e ainda tenho tanta coisa para fazer. E já fiz as compras de Natal e tudo. Desculpem lá mas não me apetecia nada morrer, apesar da oportunidade de poder partir com o resto da humanidade e ninguém se ficar a rir de mim.
Isto do fim do mundo não é brincadeira nenhuma. Quando alguém vaticina que o mundo vai acabar não nos é dada nenhuma “preview”, como no cinema. Vai acabar depressa, vai rebentar num segundo e não chegamos a dar por nada? Vai acabar lentamente, com meteoros a cair, terramotos que abrem fendas no chão e engolem milhões de pessoas, vulcões a entrar simultaneamente em erupção, tsunamis em toda a costa, cães e gatos finalmente amigos? Pode parecer que não, mas faz toda a diferença como o mundo acaba. Como se comportará a humanidade perante o fim dos dias? Será o caos e a loucura? Violações e actos de vandalismo, sabendo que não terão consequências? Ou vamos morrer abraçados aos que amamos e a rezar? Tantas dúvidas.
Mas o mundo vai acabar mesmo um dia, e isto não é nenhuma profecia. Da mesma forma que teve um início, terá igualmente um fim. É muita soberba pensar que o Sol, uma estrela como qualquer outra, estará eternamente a emitir a sua luz e a manter o nosso planeta no seu círculo gravitacional. Um dia o Sol morre, e com isto termina o sistema solar, e por inerência a Terra e toda a vida como a conhecemos. É pena, e é triste saber que isto é inevitável, paciência. Mas não vamos ter o privilégio de assistir ao fim, de sermos os últimos a usufruir deste calhau redondo que já tem 14 mil milhões de anos. Serão precisos outros milhares de milhões para que se feche este ciclo, e não vamos ser nós, os nossos descendentes mais próximos ou sequer a nossa civilzação a testemunhar este fenómeno universal.
As teorias sobre o fim do mundo existem praticamente desde o início da humanidade. Os nossos antepassados pré-históricos teriam as suas próprias concepções, e até aposto que a pouco inteligência de que eram dotados levava-os a pensar que muitos fenómenos naturais eram indicativos do fim do mundo. Uma tempestade mais violenta, uma erupção vulcânica, um terramoto ou até uma mera chuva torrencial mais demorada podiam estar a indicar o fim da espécie. Imagino-os encolhidos nas suas cavernas, aterrados com o medo dos trovões, urrando em desespero e recorrendo ao canibalismo. Para estes o fim do mundo não tinha data marcada: era uma constante.
A religião, essa invenção recente do homem desde que começou a exigir explicações da natureza, fomentou o conceito de que o mundo vai inevitavelmente acabar “em breve”. Quando digo em breve digo muito antes dos tais milhões de anos que ainda faltam antes que isso seja uma certeza. Mesmo a Bíblia, o manual sagrado dos cristãos, fala do dia do juízo final no livro do Apocalipse, a mais psicadélica das escrituras que compõem a colectânea. Aliás a Bíblia comete a arrogância suprema de explicar como o mundo começou, e de como vai acabar. É um enredo com princípio, meio e fim. Era bom que fosse assim tão simples: começou porque Deus quis, e acaba porque Deus quer. Dá menos trabalho que questionar, estudar, investigar e pelejar pela busca da verdade.
Fomos muito ignorantes até chegarmos ao conhecimento científico que hoje ajuda a explicar tanta coisa. Nem quero imaginar as virgens que foram sacrificadas para apaziguar a ira dos “deuses” que sempre tivemos a mania de inventar. O vulcão está a fumegar? Vamos atirar lá para dentro uma virgem. As colheitas foram más? Não chove? Epidemia? Vamos sacrificar uma virgem. Era complicado ser virgem, e nem os sacrifícios em vão demoviam os antigos dessa obsessão com as meninas. Os varões primogénitos também nem sempre se ficavam a rir, dependendo das crenças sobre o apetite dos deuses. Felizmente com o que sabemos hoje virgens e primogénitos dormem mais descansados. Antes dos progressos que hoje nos permite ser mais conscientes e orientados pela razão, existiam praticamente deuses para tudo. Era uma hierarquia complexa, e era preciso engraxar um sem número de patrões para tornar a vida menos complicada. “Ó sr. Neptuno, aceite o sangue desta virgem como humilde oferta, mas não me atire a minha nau contra os rochedos, por misericórdia”.
As datas redondas, capicuas e outras engraçadas são as mais apetecíveis para que se anuncie o fim do mundo. Foi o ano 1800, 1888, 1999, 2000, e mesmo para estes Maias foi o 21/12/12. Ninguém se lembra em prever um cataclismo para 15 de Setembro de 2386, ou 15/09/2386, que não é uma data lá muito comercial. Não é redondo, não é capicua e nenhum número se repete. Ia ser difícil de lembrar, não ia vender bem. Acho estranho que só recentemente se tenha falado deste dia que hoje passou e nada aconteceu. Quer dizer, os Maias não tinham previsto isto há séculos? Se era para levar a sério, deviam-nos ter preparado com anos de antecedência, e não apenas desde o ano passado, quando muita gente ainda nem sabia. Olha, podia ser que algumas criaturas mais vagarosas que às vezes nos atrapalham a vida começassem a dar mais valor ao tempo, e fossem mais despachados.
É ingenuidade pensar que um eventual fim do mundo tem data e hora marcadas, e que estas são precisas. O tempo, as datas e a sua contagem são uma invenção do Homem, e varia consoante civilizações, religiões e outros factores. A data “universal” diz-nos que estamos no ano 2012 D.C.. Passaram mesmo 2012 anos desde o nascimento de Cristo? Dois e mil e doze certinhos? E quem iniciou a contagem, que eu quero inteirar-me da sua credibilidade? E porque é que o nascimento de Cristo é tido como referência para a data actual? A era cristã dura há mais ou menos dois mil anos, dou-vos isso como certo, pronto. E os milhões de anos antes disso? Que dia é hoje, mesmo? Sábado, 22 de Dezembro de 2012. Mas só porque dizemos que é. Eu não tenho tanta certeza.
Quando era miúdo o mundo estava em plena Guerra Fria, um conflito entre as duas maiores potências mundiais da altura, ambas dotadas de um respeitável arsenal nuclear. Os Estados Unidos e os agora extintos sovietes entretinham-se a provocar guerras, revoluções e golpes de estado em vários palcos por esse mundo fora, apoiando e armando exércitos e milícias conforme as suas conveniências, mas nunca entraram em conflito directo. Os mais velhos e pessimistas diziam que uma confrontação entre americanos e russos significaria “o fim do mundo”. E não estariam a exagerar, pois isto esteve perto de acontecer há 50 anos durante a crise dos mísseis de Cuba. Mas hoje e sem Guerra Fria, as duas potências sabem que se destruíriam uma à outra e provavelmente levariam o resto da humanidade com eles, e portanto não o fazem. Mas esta é uma forma eficaz de acabar com o mundo sem precisar de premonições ou datas exactas: a estupidez humana e a sua capacidade única de se auto-destruir.
E assim sobrevivemos a mais um fim do mundo. Resta agora esperar pela próxima data em que alguém leu nas entranhas de uma ave ou recebeu um sinal divino de que o mundo vai acabar. Não sou supersticioso, não acredito na astrologia, na bruxaria, na quiromância ou nos oráculos. Estes são para mim produtos da nossa vontade em explicar o que não tem explicação, e só é normal que procuremos respostas para tudo o que ainda ignoramos. A capacidade de produzir fantasias é uma das características que nos distingue dos restantes animais, e respeito todas que não prejudiquem os não-crentes ou os inocentes (outra vez, coitadas das virgens…). Mas de uma coisa podemos ter a certeza: é mais certo que acabemos para o mundo do que o mundo acabe para nós. E agora podemos dormir todos descansados, sem pensar tanto no dia em que vamos fechar os olhos última vez.
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