quarta-feira, 12 de dezembro de 2012
Crescer em frente à televisão
Estava no outro dia a beber um café com uma amiga, que tal como eu tem filhos, e a certa altura diz-me que “não os deixa ver televisão nos dias de aulas”, e que só permite que se sentem em frente ao pequeno ecrã entre sexta à noite e Domingo. Não posso concordar com esta rígida disciplina, até porque hoje em dia a televisão é praticamente a banda sonora do nosso dia-a-dia familiar. A mim incomoda-me estar em casa com a televisão desligada, pois quando era miúdo era tradição não ligar o televisor quando morria um familiar próximo. Uma prática que hoje talvez já não se use, mas que se pode explicar pela ladaínha religiosa do respeito. Se calhar Deus ficava zangado se estivessemos distraídos a ver televisão em vez de nos rebolarmos no chão em prantos a bater o peito em memória dos mártires caídos. Mas isto é o meu ponto de vista, fruto da minha experiência em particular.
Contudo num dos pontos que debati com a minha amiga, não posso estar mais de acordo: o que é mais indicado para as crianças, e o que se deve evitar que vejam na TV? Aí concordámos em género e em espécie. Bem, eu próprio considero-me um sortudo. Perdoem-me o saudosismo bafiento, mas quando voltava da escola primária a melhor programação infantil passava depois das seis horas, no espaço que penso que já se chamava “Tempo dos mais novos”, que qualquer leitor com mais de 30 anos e menos de 45 se deve lembrar bem. Passavam então séries de animação tão educativas como ligeiras, adequadas à idade do receptor. Eram “As cidades do Ouro”, “Willy Fog e a volta ao mundo em 80 dias”, “Dartacão”, “Tom Sawyer”, “Dom Quixote”, e outros clássicos adaptados ao público mais jovem. Aos fins-de-semana passava a série “Era uma vez…”, que apesar de não ser uma das minhas preferidas, tinha o seu valor didático.
Não me foi imposta nenhuma censura, e eu próprio administrava o tempo para a televisão e para os deveres escolares, sempre com razoável sucesso. Cheguei a ficar de pé até tarde e assistir a programação pouco recomendável para a minha tenra idade. Lembro-me bem do detective “Colombo”, da “Balada de Hill Street”, do “Dallas” e da “Dinastia” (quando tinha pachorra), e do “Sim, senhor ministro”, que me fazia confusão, pois não dominando o inglês não conseguia perceber o refinado humor britânico nem o porquê das gargalhadas enlatadas de fundo. As bem intencionadas mas inúteis legendas em português não me davam qualquer pista. Não perdia pitada da “Galáctica” ou dos “Três Duques”, assistia amiúde ao “Barco do Amor”, cuja canção do genérico decorei depois de ouvir uma ou duas vezes, como o hino nacional, e mesmo séries aborrecidas para a minha idade, como “Casa na Pradaria” ou “O misterioso mundo de Arthur C. Clarke” entretinham-me numa tarde de fim-de-semana mais aborrecida. Até o capitão Jacques Costeau fazia parte do meu imaginário infantil, apesar de ter dele a imagem de “um velhote dentro de um barco”, em vez do respeitável oceanógrafo que foi.
Posso-me orgulhar ter visto programas que crianças da minha idade perderam. Em Julho de 1985 não perdi pitada do Live Aid, ficando de pé até de madrugada. E sabem com que idade assisti aos “Sete Samurais” de Kurosawa? Sete aninhos! No canal dois, numa sessão que acabou para além das três da manhã, e que teve pelo menos dez intervalos. Embrulhem! Tenho algumas memórias turvas da televisão da minha infância que hoje entendo melhor e tenho pena de não ser suficientemente desenvolvido na altura para me recordar com detalhe: o assassinato de John Lennon, a morte de Francisco Sá Carneiro, o mundial de futebol de 1982 em Espanha. Tenho a certeza que todas as gerações sofrem deste mal, que nem chega a ser um mal, mas apenas uma questão de “timing”. Uns tiveram a sorte de presenciar a chegada à Lua, outros viram a queda do muro de Berlim, outros ambas as coisas, outros nada, mas serão capazes de ver coisas que os primeiros já não vão ter oportunidade de assistir. Para nós o presente é sempre um dado adquirido, e a nostalgia fica reservada para o passado. É assim que sempre foi desde o evento da televisão, e é assim que sempre será. Ao contrário dos filmes, que podemos ver e rever a qualquer altura, a televisão é uma máquina que não pára e não olha para trás, e que nem a RTP Memória e quejandos consegue trazer de volta por completo. Há coisas que vimos, integradas no contexto do tempo, e que mais ninguém pode ver com a mesma emoção, mesmo que repetidas anos mais tarde.
Da produção nacional lembro-me mais ou menos bem do primeiro “Eu Show Nico”, do início dos anos 80, que assistia numa televisão com antena interna, com inteferências que hoje dariam cabo dos nervos de um monge trapista. Segui o “Sabadabadu”, um marco histórico na televisão portuguesa, que cumpria a tradição do entretenimento do Sábado à noite. Ivone Silva e Camilo de Oliveira faziam rir velhos e novos, e mesmo para mim, que era ainda pequeno, o humor deste duo que entrou para a história da comédia nacional era bastante acessível. Mas foi no “Tal Canal” que testemunhei a revolução, que punha fim à ditadura do humor revisteiro, e que os mais velhos ficavam sem perceber muito bem onde estava a graça, ainda pouco habituados ao humor brejeiro e pouco receptivos a algum do atrevimento a que Herman José hoje já nos habitou, e que fez escola. Ria-me com vontade de alguns dos sketchs do “Tal Canal”, que provocavam apenas um sorriso amarelo nos meus avós, ainda meio incrédulos, e que foi uma prova indesmentível da mudança de valores que se preparava para acontecer num país ainda muito pintado em tons de cinzento.
Curiosamente foi durante a pré-adolescência que os meus pais mais se preocupavam com o que passava na televisão. Lembro-me bem de me acordarem em clima de festa a altas horas da madrugada quando Carlos Lopes venceu a maratona olímpica em 1984, mas foi com mágoa que me recordo ir para a cama mais cedo durante o mundial de 1986 no México, muito por culpa dos fusos horários, essa coisa maluca que na altura não entendia muito bem. Vinguei-me em Dezembro de 1987, quando assisti ao vivo e a cores, com uma lágrima a tentar escapar dos olhos, ao FC Porto a tornar-se a primeira equipa portuguesa a vencer um mundial de clubes, no célebre jogo disputado na neve no Japão, e que terminou a horas indecentes. No ano seguinte estive com o meu pai e mais 120 mil pessoas no Estádio da Luz a assistir à vitória do Benfica por 2-0 sobre os romenos do Steaua que deu aos encarnados a passagem à primeira final da Taça dos Campeões em 25 anos. Voltei para casa às 4 da manhã em dia de aulas, um acto de rebeldia que nem chega a contar como exemplo de “desleixo parental”. Como estou agradecido ao meu pai por esta experiência única.
Mas voltando à televisão. É muito difícil estabelecer um padrão exacto sobre o que é bom ou mau para as crianças. Por exemplo, a animação é muito mais inofensiva que as séries com actores de carne e osso. Qualquer criança com dois anos de idade que não seja retardada apercebe-se que nos desenhos animados acontecem coisas impossíveis de acontecer na realidade. Dou um exemplo: um desenho que me irrita e que me faz mudar sempre de canal é o “Roadrunner”, uma avestruz irritante que passa a vida a ser perseguida por um coiote incompetente, a vergonha dos predadores da raça canídea. O tal coiote, em vez de se pôr a jeito de agarrar o passaroco pelo pescoço e arrancar-lhe a garganta à dentada, como seria de esperar da lei do mais forte do mundo animal, monta complicadas armadilhas onde acaba sempre por ser ele a cair, ora sendo esmagado por rochas, ora caíndo de precipícios, ou dinamitado. Na cena seguinte aparece sem um único arranhão, urdindo mais um plano que sabemos à partida que não vai resultar, e cujo desfecho quase sempre conseguimos adivinhar sem muito esforço. Nem consigo imaginar que tipo de público infantil considera isto interessante. Aliás os desenhos da Looney Tunes são em geral muito pouco educativos, e chegam a ser previsíveis e repetitivos. O próprio Bugs Bunny, ou “Pernalonga” na versão portuguesa, aborrece-me com a forma arrogante com que manipula aquele caçador careca. Às vezes gostava que algum “enfant terrible” da animação produzisse um episódio em que o caçador rebenta os miolos do Bugs Bunny e depois delicia-se com um coelho à caçadora. As crianças também não se iam importar muito.
Um desenho que gosto bastante, apesar da falta de criatividade, é o Speedy Gonzalez, um rato mexicano que corre mais que uma lebre enquanto grita “Arriba! Arriba! Andare!”, dotado de uma hiper-actividade suspeita. Para os mais atentos, este “cartoon” que já foi considerado racista pode ser entendido de uma forma adequada aos tempos que correm. Um mexicano viciado em cocaína e metanfetaminas salva os seus compatriotas alcoólicos e decadentes de um tal “señor gato”, que aqui representa um cartel de droga qualquer, daqueles que executa políticos honestos, polícias e elementos de cartéis rivais quase diariamente. O Speedy Gonzalez tem um grande potencial, e quem sabe se só bastava que o Robert Rodriguez e o Quentin Tarantino pegassem na história. Recentemente fiquei a saber que o desenho “Tom & Jerry”, sobre um gato e um rato que andam à porrada mas no fundo são amigos e não passam um sem o outro (é como na luta livre, e no fim vão juntos beber uns copos e depois vão às ratas) é o mais popular na Indonésia. Não sei se é por não existirem diálogos, e assim a censura da maior nação islâmica do mundo não tem muito trabalho. Talvez o conceito de um gato zangado a correr atrás de um rato sorridente e fanfarrão seja “halal”, e caso um dos personagens fosse um porco, o “Tom & Jerry” era proibido. Aposto que o “Porky Pig”, o porco gago famoso pelo “th-th-th-th that’s all folks!” não passa na Indonésia.
Nas séries com actores de carne e osso o caso muda de figura. Lembro-me de uma série que passou em Portugal em meados dos anos 80 e de que era ávido seguidor: “Jovens Heróis de Shaolin”, produzida em Hong Kong, falada em cantonense e com legendas em português, o que ao mesmo tempo preservava a sua essência e deixava-nos compreender o enredo. Nesta série que tinha o kung-fu como prato principal, viamos os tais “heróis” a vencerem sozinhos e desarmados dez inimigos munidos de sabres. Bem, isto é ficção, mas convém explicar isso aos jovens mais desatentos. Fosse isto possível, e quem sabe Fernão de Magalhães e os seus cinquenta homens tinham vencido a batalha de Mactan, nas Filipinas, contra os 1500 soldados do líder tribal indígena Lapu-Lapu, armados até aos dentes com facas e catanas. Alguns heróis das séries e dos filmes são capazes de derrotar sozinhos dezenas de inimigos, às vezes com recurso a proezas quase sobre-humanas, mesmo depois de ter perdido litros de sangue e tenham as tripas quase todas de fora. Não concordo que a violência seja traumatizante para as crianças. Eles habituam-se a assistir a cenas violentas um pouco por toda a parte, a violência está instituticionalizada, e o que chocava há 20 ou 30 anos hoje é considerado normal. É só preciso ter a certeza que eles convivem bem com esta realidade, que não correm nenhum risco, nem estão na iminência de ser vítimas de algum atentado terrorista, mas o mais importante é fazê-los ver que não vivem num mundo cor-de-rosa.
No início dos anos 90 passava ao fim da tarde na RTP a série “Super Boy”, sobre as aventuras do “Superman” quando era ainda um chavalinho. Uma professora minha chegou um dia a casa do trabalho e deparou com o filho de seis anos pendurado no muro da varanda do 6º andar com uma toalha atada ao pescoço, preparado para saltar e voar como o seu herói. A senhora, obviamente aterrorizada com o que via, conseguiu ter o sangue frio para se aproximar silenciosamente do rapaz e agarrá-lo, salvando-o de uma morte certa. Tivesse ela gritado e quem sabe o jovem caía, e não havia Clark Kent que lhe valesse. Claro que isto é um exemplo extremo, mas exemplifica bem o cuidado que alguns pais devem ter para ensinar os filhos a distinguir a ficção da realidade. Não se deve ter receio de se estar a insultar a inteligência dos jovens, explicando-lhes que não existe ninguém imortal, que as pessoas não voam como os pássaros, ou que se pode ser resistente às balas, como o tal super-homem. Ironicamente o actor que mais celebrizou o homem de aço ficou tetraplégico depois de uma queda de cavalo. Este exemplo pode servir para ilustrar bem a vulnerabilidade da vida humana, e que a ficção não passa disso mesmo, de uma não-realidade. Mesmo que os miúdos já percebam isto, não se canse de explicar. Mais valem mil lógicas da batata que uma informação a menos que possa custar uma vida. Como no lema dos nadadores-salvadores: “melhor dez alarmes falsos que uma vez tarde demais”.
Conheço pessoas que, por falta de informação, confusão ou simplesmente ingenuidade acreditam que alguns personagens de ficção existiram mesmo, e que são mais que lendas: são “personagens históricos”. Tinha um amigo meu que insistia que Robin Hood existiu, e quando lhe dizia que era apenas um produto do folclore inglês, retorquia que “não senhor, e prova disso é que vivia em Notthingham, que é mesmo uma cidade inglesa”. Ora aí está uma prova irrefutável. Tão válida como afirmar que basta ir a Nova Iorque para conhecer o Homem-Aranha. Os nova-iorquinos já não lhe ligam nenhuma, de tão habituados que estão a vê-lo todos os dias, e ainda hoje não lhe perdoam que estivesse de lua-de-mel na Jamaica com a Mary Jane quando se deram os atentados de 11 de Setembro. E isto não fica por aqui; há quem pense que o lendário herói suíço Guilherme Tell existiu mesmo, porque era da Suíça, um país que “existe”, que D. Quixote de La Mancha era alguém que Miguel de Cervantes conhecia e sobre o qual um dia escreveu, ou que o “historiador” Alexandre Dumas relatou os feitos de um tal D’Artagnan e os seus três amigos Mosqueteiros. Por acaso o cardeal Richelieu (Armand Jean du Plessis) até existiu, e fosse o Dumas escrever hoje aquelas barbaridades que vilanizaram o clérico, e não se livrava de um processo judicial na certa.
Em jeito de conclusão, existem casos pontuais de programas televisivos que dão a esse pequeno mundo com que as crianças facilmente tomam contacto um mau nome. Assim de repente lembro-me de uma série de animação japonesa que provocava convulsões a quem assistia. Eu pessoalmente não gosto de animação japonesa. A única que assistia quando era jovem era o “Conan, o rapaz do futuro”, que era bastante criativa, uma realidade distópica adaptada aos mais novos. Não me agradam desenhos onde só se vêem máquinas e robôs futuristas e inconcebíveis a rebentar com tudo o que lhes aparece pela frente; não se aprende nada, não existe um conteúdo válido que nos deixe a pensar. Contudo pode-se dizer que podemos colocar os petizes em frente à televisão sem precisarmos de nos preocupar muito, basta não os deixar lá o dia todo e esperar que ela substitua os pais e a escola na função de educar e distinguir o mal do bem. E hoje eles são cada vez mais espertos e curiosos, e já não é tão fácil ludibriá-los, como no tempo quem um tal “McGyver” convenceu uma geração inteira de que se conseguia fabricar uma bomba utilizando apenas atacadores de sapatos, uma tampa de Pepsi e uma pastilha elástica. Eu preocupava-me antes com os vídeos que existem às dúzias no YouTube que ensinam como produzir drogas sintéticas utilizando produtos que qualquer um pode adquirir no supermercado da esquina. Ah pois, mas o YouTube não entra nestas contas.
Muito bom resumo Leocardo.
ResponderEliminarEmbora seja um bocado mais novo, foi isto tudo que vi também quando era puto.
A titulo de curiosidade, domingo passado foi para o ar o primeiro episodio da 2da temporada das Cidades do Ouro, que se passa agora na China.
Aqui fica o trailer:
http://www.dailymotion.com/video/xrcr5f_les-mysterieuses-cites-d-or-saison-2-trailer-2012_shortfilms#.UMiopHf1Z8E