sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Rua dos Ervanários


Para quem ainda não leu, aqui fica o artigo publicado na edição de ontem do Hoje Macau. Um artigo de mil palavras sobre a lindíssima Rua dos Ervanários. Pode aceder ao link aqui.

A Rua dos Ervanários é uma das mais fascinantes e típicas de Macau. É uma rua que representa o Macau antigo, aquele que queremos preservar, que não queremos que desapareça. Localizada na zona que os portugueses designaram por “tin-tins”, a menos de cinco minutos a pé do Largo do Senado, nesta rua encontramos várias lojas de ofícios que muitos pensam já extintos no território. Pelo menos quem pensa que Macau é a terra dos casinos, do comércio de luxo e das lojas de marca, a Rua dos Ervanários é uma das últimas resistentes do comércio tradicional, e um “must see” para quem quer conhecer a matriz do território.

Lá podemos encontrar, ao longo da calçada portuguesa iluminada à noite por candeeiros altos de luz alaranjada, lojas de pivetes, de algibebes, latoarias, ourivesarias onde os conhecedores podem encontrar um pouco de tudo, desde raras peças de jade, lojas de quinquilharia, numismática e outras antiguidades, passando por mobília, lençóis e até lingerie. Quem se quiser demorar mais tempo por estas lojas – e é sempre recebido com um simpático sorriso – “arrisca-se” a encontrar várias surpresas, desde livros e posters antigos, discos de vinil, calendários e outros objectos que variam entre o bom gosto e o kitsch. E tudo a um preço amigo.

Quem vem do Largo do Senado pela Rua dos Mercadores, passa pela Rua das Estalagens (outro local a visitar) e chega à Rua dos Ervanários, e encontra logo uma lojinha onde pode comprar roupa contrafeita, e que anuncia com orgulho que faz “t-shirt stamping”. Ora aí está a solução para quem procura a camisola dos seus sonhos. Existe logo à entrada da rua um restaurante que serve “ta pin-lou” (uma espécie de guisado) de carneiro, que abre apenas ao final da tarde, com três ou quatro mesas instaladas em cima do passeio, à revelia dos regulamentos municipais. É tão popular que há quem chegue a esperar horas por um lugar, e é frequentado por gente de todas as origens e estratos sociais. Basta “saber pedir”, e uma bela jantarada fica por qualquer coisa como 90 patacas por cabeça. Quem preferir o clássico “char siu” (carne de porco assada) pode andar mais alguns metros e deliciar-se no “Fu Loi Mei Sek Tong”, que exibe com um despretensioso orgulho os cadáveres de galinhas e patos na montra da loja. Com alguma sorte pode mesmo comer lá, pois existe apenas uma mesa.

Quem anda pela Rua dos Ervanários, completamente vedada ao trânsito, com a excepção de uma ou outra bicicleta mais atrevida, delicia-se a observar o dia-a-dia desta gente por quem o tempo parece não ter passado. Existe ali a “Associação Geral dos Idosos Respeitosos de Macau”, que ilustra bem o que estou a dizer. Mesmo em frente a esta encontramos o mestre de medicina chinesa Cheng Lai Keong, um conhecido “Tit ta”, massagista de quedas e pancadas. Um recurso usual a quem torceu um pé e não quer perder tempo no hospital. Ao lado da tal associação dos idosos que respeitam e se dão ao respeito encontramos a latoaria Veng Kei, que vende panelas, tachos, taças e outros objectos de latão. Um pouco mais à frente está a alfaiataria Va Seng, pequena e humilde, e com uma cabine de provas que consiste num biombo mesmo na entrada da loja tapado por uma cortina vermelha. Verdadeiramente fascinante.

A maioria do comércio desta rua decorre de forma bastante descontraída. Tratam-se essencialmente de empresas do tipo familiar, cujo espaço foi passado de pais para filhos, completamente alheios à loucura da especulação imobiliária. É pena que algumas lojas tenham já fechado, ao ponto da implacável CEM já lhes ter cortado o fornecimento de electricidade e tudo. A maior parte do dia os proprietários destes espaços jogam às cartas, ou ao mahjong, enquanto esperam por eventuais clientes. Se não aparecer nenhum tanto faz, amanhã têm novamente a porta aberta. Animais domésticos passam o dia à porta estendidos gozando da calma e do ar fresco que por ali corre livremente; é que nesta zona não existem mastodontes. Os prédios mais altos nas ruas circundantes terão no máximo cinco andares.

Continuando o passeio por esta rua, encontramos a famosa loja de pivetes Veng Heng Cheong, especializada em pauzinhos de incenso destinado ao culto aos deuses. É quem sabe a loja de pivetes mais famosa de Macau, mas a sua exiguidade não permite mais que um cliente ao mesmo tempo. O espaço deste estabelecimento é praticamente todo ocupado pelo seu proprietário e pelos milhares de pauzinhos para queimar, com um chão todo coberto de pó e cinza. Em frente ao Veng Heng Cheong existe um negócio de papéis votivos, que chama a atenção pelo enorme peixe de papelão pendurado por cima da porta. Ali perto encontramos a loja I Hap San Kei, que vende estátuas de terracota, conjuntos de chá e braceletes de jade. E por falar em jade, um dos maiores negociantes deste produto é a “Ieng Fung Five Dollar Antiquities”, onde pontifica um “dealer” que graças a um monóculo dos antigos, analisa o valor deste ouro verde.

O tratamento da língua portuguesa neste tipo de negócios chega a ser enternecedor. Temos as “Ouriversarias”, os “antiguários” ou as “lojas de virdros”. Chegando ao fim da rua, passando por lojas de algibebes (fatos feitos), lojas de espelhos que espantam os espíritos indesejados e os maus olhados, temos a Rua da Tercena, onde todos os dias ao fim da tarde, o quase todo o dia durante o fim-de-semana, temos uma espécie de Feira da Ladra, onde qualquer um pode vender objectos usados em cima de uma toalha. Ali encontramos um pouco de tudo, desde sapatos a malas usadas, vitrolas, estátuas, moedas, sapecas, facas de ponta e mola, mil e uma coisas. E tudo absolutamente negociável. É também recomendável perder-se pelas ruas apensas, como o Beco da Ostra, a Travessa dos Ovos ou o Pátio da Eterna Felicidade, tudo razões para uma visita mais demorada. Quem não conhece a Rua dos Ervanários e as suas vizinhanças, não conhece Macau.

4 comentários:

  1. Adorei este artigo :)

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  2. Tenho lido sempre os seus artigos e parece que você não perdeu o jeito para a coisa!

    Continue o bom trabalho!

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  3. O Bairro do Oriente está a ficar melhor que nunca!

    Grande Abraço
    Pedro Queiroga

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