sexta-feira, 23 de novembro de 2012
Máquina do tempo
Durante esta breve brisa que é a vida, tive a sorte de ser contemporâneo do Dr. Henrique de Senna Fernandes, o mais celebrado (o único?) escritor macaense. Um homem que descreveu esta terra que amo como ninguém, e de cujo o passado tenho saudades. Mesmo aquele que não presenciei, aquele que faz parte de uma memória longínqua e que fico deliciado quando amigos macaenses mais velhos me descrevem. Foi isto que senti quando li e reli “Os Dores”, a obra póstuma do advogado e professor que em boa hora o Instituto Cultural lançou em Setembro último. Passar os dedos por este livro é como embarcar numa viagem ao passado. Para quem conhece as ruas e os caminhos de Macau, ler “Os Dores” é como entrar numa máquina do tempo, que nos transporta à cidade colonial do primeiro quartel do século XX.
É fácil identificar-me com todas as localizações que o escritor escamoteia no livro. Imagino como seria a “cidade cristã”, desde a Calçada de Sto. Agostinho, onde viviam os Policarpos, passando pela Rua do Padre António (onde vivo), localização da luxuosa mansão dos Madruga, terminando na espelunca imunda na Travessa de Sancho Pança, onde residia o decadente José Lucas Pernes, a imagem do boémio português que mesmo ainda nos nossos dias vai persistindo num tom mais sofisticado. Macau foi sempre uma cidade apetecível para aventureiros, devassos e promíscuos, dependendo do modo e do tempo. Para gente que sabe contar uma boa mentira e iludir os mais inocentes. Agradou-me sobremaneira a forma como Senna Fernandes descreveu a parada de entrudo de 1920, que terminava na mansão do abastado Celidónio Ventura, que dispunha o salão de baile aos mascarados e foliões. Vem-me à memória os gloriosos tempos dos carnaváis festejados no Teatro D. Pedro V nos anos 60, onde o saudoso Adé apresentava as suas récitas em patuá apoiado pelo seu grupo de pândegos transvestidos, muitos deles respeitosos pais de família. Era tudo em nome de uma tradição que tinha como pano de fundo a quaresma, que para os macaenses, tementes a Deus e adoradores dos santos como ninguém, era cumprida à risca. Aliás em “Os Dores” o patuá é apresentado como o terceiro idioma de Macau daquele tempo, ombreando com o português e o cantonês. Encantou-me a descrição da farta mesa macaense, ao ponto de me deixar água na boca, com algumas iguarias mesmo já extintas, infelizmente.
A personagem principal do livro, Leontina das Dores, é o protótipo da mulher macaense, da mestiça obediente e submissa, desconhecedora ela própria da sua origem, amarrada a um mundo de preconceito que levava as mulheres de boas famílias a encontrar um bom partido com quem casar, e às restantes que fossem simplementes boas donas de casa ou que aprendessem um ofício tipicamente feminino para poderem sobreviver. Àquelas concebidas fora da santidade do matrimónio era atribuído o epíteto de “enjeitadas”, e eram condenadas à institucionalização e ao degredo. Esta terra era uma terra de homens. É curioso observar como a Igreja Católica desempenhava um papel fulcral, mesmo esmagador, na sociedade macaense. Era ela a encarregada de todo o tipo de função social. Ora tratava dos casamentos e baptizados, funções sem as quais era impossível ter direito à existência, dos orfãos, dos bastardos e das viúvas, e tinha um papel incontornável na escolaridade. O ensino público, o laicismo ou a irreligiosidade eram uma miragem. Quem ficava fora dos círculos das paróquias era um pagão ou um demónio. Quem não era cristão ou budista simplesmente não tinha lugar. É uma influência que se sente ainda hoje, se bem que mais diluída com a modernidade e o passar do tempo. Mesmo o conservadorismo da sociedade chinesa é retratado no livro, e nos dias de hoje não é muito diferente. Macau foi sempre uma cidade tripartida: pelos portugueses, pelos chineses e pelos macaenses, todos donos do seu sentido próprio.
Em “Os Dores” está presente tudo o que podíamos esperar do autor de “A trança feiticeira” e “Amor e dedinhos de pé”. Confesso que fui acometido de preconceito, pois antes de ler as obras anteriores do autor vi os filmes, e verdade seja dita, a transposição para o celulóide não faz justiça às obras originais. É verdade que é preciso sentir Macau para que se entenda a paixão da escrita, o cuidado com o detalhe, a descrição promenorizada de um tempo em que parece que o agente esteve presente, mesmo que o seu conhecimento tenha sido fruto de muita atenção, investigação, e sobretudo curiosidade. A cidade do início do século XX que Senna Fernandes descreve, com todas as suas particularidades, desde os sítios de lazer, de férias ou de pesca, não é mais que um sentir muito próprio do macaense, da busca das suas origens, da determinação e da paciência, do cuidado de escutar os mais velhos. Imagino o Dr. Henrique de Senna Fernandes enquanto jovem como um curioso obediente, um homem completamente integrado nas suas tradições e ávido de conhecer as suas raízes. Um atento ouvinte.
O ser feminino em Senna Fernandes é também o fruto de uma observação cuidada; não sendo um estranho nos labirintos da paixão, da sedução e do erotismo, Senna Fernandes nunca deixa de relatar os encontros sexuais entre os seus protagonistas como uma vontade mútua. Muita boa gente em Macau ainda considera que o prazer sexual é um exclusivo dos homens, e que as mulheres são as vítimas do desejo masculino. Senna Fernandes cuida em deixar claro que, no que toca ao amor, as mulheres têm as mesmas ambições e os mesmos desejos que os homens, nunca descurando o imperativo do falo sobre o que a certa altura define como “o triângulo negro de tufo áspero”. Não é deixada de parte a dialéctica do macho dominador sobre a fêmea submissa, sem que isso signifique a superioridade de alguma das partes. Para quem era assumidamente conservador e religioso, a sua visão da cópula surpreende, romântica com uma dose de erotismo quanto baste, sem nunca entrar pelo facilitismo da pornografia, se bem que algumas referências (“mastro real”, “entrada apertada”, “gruta fervilhante”) lembram o misticismo erótico de Henry Milller no seu melhor. Quem sabe um pouco além do que seria de esperar para quem sempre foi conhecido por um respeitoso patriarca e devoto católico, como era o Dr. Henrique Senna Fernandes.
Em suma, recomendo “Os Dores” como uma leitura introdutória a quem só agora começou a amar Macau, ou a quem tem esta terra como uma amante recente, ou mesmo uma mera meretriz. A todos que cultivam o gosto pela leitura, no fundo, e especialmente aos que querem saber mais sobre a cidade do santo nome de Deus. A obra póstuma de Senna Fernandes é o testemunho de uma cidade viva, de uma cultura rica, que hoje se vai apagando. Os irredutíveis macaenses vão-se agora estrategicamente integrando no regaço da grande China, bebendo a sua cicuta, e assim extinguindo a cidade que Leontina das Dores conheceu. Viram-lhes as costas, como a própria Leontina fez com Floriano Policarpo na última página do livro. Uma pena.
PS: Há algumas semanas o director deste jornal chamou a atenção para o pouco cuidado que o Instituto Cultural vetou a esta edição de “Os Dores”. É certo que o Dr. Senna Fernandes nunca deixaria a sua obra passar com erros gramaticais ou pontuação dispersa, mas toda a essência da sua escrita está ali presente. É um mal menor. De certeza que ele perdoa.
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