Crise de meio handover

Esta manhã fui almoçar com uma amiga num restaurante muito giro, e como cheguei primeiro pedi um café e peguei numa revista. Entretanto a minha amiga chega acompanhada dos “amigos” dela, pessoas asquerosas e detestáveis que nem me atrevo aqui a descrever. O almoço passou lento e turtuoso, com montes de interação amigável com aqueles idiotas, só para “não ofender”. Este é um problema dos nossos amigos/as, maridos, mulheres, amantes, etc. – os co-amigos.

O facto de gostar de uma pessoa não me habilita a gostar automaticamente da sua família, dos seus amigos ou do seu cão. É apenas um relacionamento, não é nenhuma herança pesada ou uma maldição. Com a minha mulher tenho o mesmo problema, obviamente. Não gosto da maioria dos amigos dela, causam-me desconforto, irritam-me profundamente. Ora são “nerds” ignorantes sem o mínimo de noção sobre regras de comportamento social, ora patricinhas conservadoras e com “bom gosto” que depois afinal é uma merda, ora pêgas sem vergonha nenhuma – curiosamente até simpatizo mais com estas últimas. Daí que a minha mulher acusa-me apenas de gostar de “marginais” (a sério...) e “galdérias” (tão bom...).

Aqui o choque cultural bate mais que uma cara contra uma porta. Depois de ter vivido aqui nos oito últimos anos da Administração Portuguesa e nos primeios onze da RAEM, sinto-me agora numa espécie de crise de meia idade, ou neste caso, de meio handover. Reparo até em certas diferenças entre os meus filhos – ela, que nasceu no pré-handover, e ele que nasceu no pós, têm conceitos bastante díspares. É preocupante e assustador. No princípio acreditei na nova juventude da RAEM, que em 20 de Dezembro de 1999 conseguiu a next best thing à independência, e podiam ser finalmente livres. No fim tornaram-se assim pessoas vazias, materialistas, mesquinhas, frias, demasiado insonsas e sem uma causa justa para defender. Completamente amorfos.

Já exprimentaram falar com eles sobre política, por exemplo? Não há por aí um único político de que não digam que “é rico”, em vez de “é um funcionário competente e servidor”. Penso que terão havido alguns erros de planeamento no meio de tudo isto, como o facto de se ter resolvido o problema do desemprego com os casinos, por exemplo. Nos casinos não se aprende nada de bom, nem gestão nem nada. São empresas (com capitais estrangeiros, ainda por cima) com fins puramente lucrativos e cujos métodos são bastante duvidosos. Olhemos também para os nossos taxistas, por exemplo. Costumavam ser bons rapazes, simpáticos, trabalhadores, e vejam no que se tornaram. Muitos destes taxistas são os mesmos há muitos anos (só no meu prédio vivem dois), só que foram completamente “deseducados” pelo sistema.

Dos guias turísticos, protagonistas de alguns dos últimos capítulos mais vegonhosos, nem vale a pena falar, uma vez que a maioria deles são também originários da China continental e as agências de viagem são controladas por Hong Kong, e é a estes que a indústria do turismo está entregue. A tal da ruptura não passou apenas pelo turismo e pelo facto de virem agora mais turistas que antes. A tal da ruptura sente-se também na área da saúde, onde faltam hospital e médicos, e não são quatro mil patacas e quinhentas em vales de saúde que levam um doente crónico a um especialista em Hong Kong.

Passaram-se onze anos desde o handover, e Macau continua a ser assim uma espécie de promessa adiada. Continuamos a ter os mesmos intérpretes das mesmas políticas estagnadas, e níveis de aceitação positivos. Parece que é o destino. A população parece contente com o que tem, e não questiona sequer a educação ou a objectividade da mesma, pois até os professores parecem inclinados a fazer o seu trabalho e não levantar muitas ondas. É mesmo uma crise de meio handover. Vamos ver se passa.