quinta-feira, 15 de abril de 2010
O meu bairro chinês
Tenho o privilégio de viver num bairro onde é praticamente impossível ver outro português. Não que eu não goste de portugueses, ou de ver portugueses, mas sem dúvida que o facto de ser praticamente o único "kwai-lou" nas vizinhanças dá-me a vantagem de poder circular, fotografar e relatar sem levantar suspeitas quanto à minha identidade. Por outro lado não é nada fácil fazer o papel de "ocidental" numa comunidade que é quase 100% constituída por locais, sem falar a língua, de ser conhecido por "aquele diabo". Isto para não falar dos mal-entendidos culturais, do incómodo de ser o centro das atenções.
E é disso mesmo que se trata: do centro das atenções. A minha mulher, especialista em assuntos sínicos e que me dá a mão nesta viagem pelas trevas da sociedade chinesa, diz sempre que "a única razão que os nossos vizinhos são tão simpáticos contigo é porque tu és estrangeiro!", com algum desdém. "Os chineses são uns complexados e pelam-se por tudo o que é estrangeiro", acrescenta. Deve ser para me fazer sentir menos especial. Na verdade considero os vizinhos bastante simpáticos, todos metem conversa comigo no elevador, o que me leva a espremer o pouco cantonense que falo para não parecer deselegante. Todos sabem exactamente o andar onde vivo, e excusado será dizer que não tenho margem de manobra. Se acontece qualquer coisa cá em casa, fica o prédio todo a saber no dia seguinte.
Depois a família. São anos e anos de convívio sem nunca ter tido uma conversa digna desse nome. Com primos e as primas mais jovens ainda dar para ter um diálogo em inglês, mas os sogros, os tios e as tias só sabem de mim o que a minha mulher lhes deixa saber. Chega a ser embaraçoso quando às vezes lhes dou boleia de carro para qualquer sítio e passamos a viagem inteira lado a lado sem trocar uma palavra. No fundo são gente simples, da classe média-operária, que vive desafogadamente mas sem manias da grandeza ou a mínima ostentação. Isto é malta que se junta todos os dias ao jantar na mesma casa antiga de rés-do-chão. Os mais pequenos fazem os trabalhos de casa juntos, a empregada cozinha, um dos tios volta do trabalho e dorme a sesta no sofá, alheio ao reboliço dos mais novos.
O grande problema é o jantar propriamente dito. Devia considerar-me sortudo por ter a oportunidade de comer comidinha chinesa caseira todos os dias, mas fiquei farto. Foram muitos anos de arroz frito, costeletas fritas, "char-siu" e "siu-yuk", massas, peixe seco ou peixe cozido a vapor por gengibre e cebolinho, sopas que se bebem em vez de se mastigar, vinho ou cerveja bebido em tigelas, e toda aquela etiqueta de se tirar a comida da travessa e comer com pauzinhos diferentes. Faz-me falta uma caldeirada, um peixe grelhado, uns bifes com batatas fritas, uma boa açorda. Sobretudo faz-me falta ver o Telejornal durante o jantar, pois como podem calcular, a televisão está sempre sintonizada nos canais chineses de Hong Kong. Agora jantares com a família toda só em ocasiões festivas.
Mas para eles tenho sempre um desconto, pois afinal sou "estrangeiro". E como podem retribuir o orgulho de terem uns netos tão giros, tão macaenses, tão únicos? Quando eram mais pequenos a sogra levava-os à padaria aqui perto para meter inveja às vizinhas. "Que menina tão loirinha, que menino tão engraçado, que olhos tão grandes", diziam, enquanto rematavam com "são parecidos com o pai e um bocadinho com a mãe", para não ofender. A sogra, já inchada, respondia com um "não sei o que estava aquela rapariga a pensar quando casou com um estrangeiro...que grande chatice". A típica humildade chinesa em todo o seu esplendor.
A vizinhança já me conhece toda, desde à mulher das couves, do tao-fu, da loja de artigos votivos, da mercearia, os vizinhos que se metem nos copos e jogam mahjong na rua de tronco nu no Verão, as caixas do supermercado, todos mandam chauzinhos quando me vêem na rua. Os diálogos resumem-se sempre ao "sek cho fan mei-ah?" (já comeste?) ou ao "sau-kong mei ah?" (já saíste do trabalho?), e aos fins de semana perguntam-me "fong ka?", como quem diz "com que então não se trabalha ao Sábado, seu malandreco". Acho supreendente que alguns comerciantes onde nunca comprei nada sejam tão simpáticos comigo e tenham sempre um sorriso nos lábios quando me encontram. O desportivismo das peixeiras do mercado deve ser único do mundo, quando compro sempre na banca ao lado delas, mas nunca na sua. Sempre com uma palavra amiga, um "como vão os filhos", ou ainda conversa fiada do tipo "hoje vi a tua sogra".
São uma gente que se mexe muito, que trabalha praticamente de sol a sol. Vestem roupas simples, andam de chinelos na rua, levam os bebés às costas. Não há qualquer tipo de hipocrisia ou maldade, nunca me senti enganado. São muito "pão pão, queijo queijo". Já nem ligo quando vejo pés descalços em cima das cadeiras quando comem naquelas tasquinhas de min no meio da rua, ou quando acompanham a vida quotidiana com aquele coro de arrotos e cuspidelas, arrancadas do fundo garganta e das narinas num sonoro "kung-fu" - "kung" quando puxam a escarreta, "fu" quando a mandam para o chão da rua. Seria possível em Portugal alguém comer num restaurante de calções e tronco nu? Talvez só na praia.
Às vezes tenho saudades de uma conversa fiada sobre o Sporting ou o Benfica, ou sobre os males da economia ou da governação que faz o dia-a-dia dos portugueses, de uma conversa de café ou de esplanada. Sinto-me um pouco sozinho de vez em quando, especialmente quando praticamente todos meus amigos são chineses ou macaenses, e é preciso explicar o "background" das coisas quando lhes quero falar de Portugal. Mas não trocava isto por mais nada no mundo. As coisas são como são, e não me resta mais nada senão sentir-me "integrado". E depois ia morrer de saudades de tudo isto.
Conversa fiada sobre o Benfica já leva com muita aqui no Bairro do Oriente e, quanto aos males da economia e da governação portuguesas, já metem nojo. Eu sou obrigado a levar com essa treta nos telejornais portugueses porque a minha família é portuguesa e deve ser masoquista, pois faz questão em ver essa porcaria toda. Por isso, deixe lá, que você está muito melhor assim como está.
ResponderEliminarMeu caro Leocardo, aguenta-te. reconforta-te pelo facto de, essas experiencias, enriquecerem as tuas belas crónicas de " costumes" que são belas...aliás, deixa-me fazer-te o elogio...passa-as a livro! Olha que já vi muita coisa publicada em Macau, bem apoiada em subsidios, que nem aos calcanhares do que escreves chega!
ResponderEliminarEm Portugal, 15 Abril de 2010
JL
Excelente post.
ResponderEliminarSão textos desta qualidade que dão aquele brilho especial a este blog!
Parabéns Leocardo
Olá Leocardo
ResponderEliminarAdorei o seu post, aliás entretenho-me sempre a ler o seu blogue de quando em quando que foi a minha irmã quem me o sugeriu, por acaso!
Mais a mais, sendo macaense que conhece ambos os lados, o português e o chinês, consigo muitas das vezes relacionar-me com aquilo que escreve. E através daquilo que escreveu, parece-me a mim que entende suficientemente bem (para quem não fala a língua) o humor chinês, o que é bastante engraçado porque não são muitos os portugueses que compreendem. Tendo em conta que o humor varia muito de cultura e da própria língua também.
Relativamente àquilo que a sua mulher diz, acredito que diga com alguma razão e não porque o quer fazer sentir menos especial. Sempre achei os Chineses um bocadinho complexados e por conseguinte (penso eu) nutrem um certo "respeito" pelos estrangeiros e a estes refiro-me aos não Asiáticos em particular. Conheço Chineses que cresceram no Estrangeiro e que claramente falam chinês e bebem a sopa que não se mastiga em casa, mas que negam as próprias raízes. Uns querem virar Japoneses, outros querem ser Brancos.
Mas enfim... como Macaense com alguma feição ocidental, também já ouvi coisa do género. "Lei Hai Kuai Mui Jai Ah Mah" lol
Estou agora em Inglaterra e muitas das vezes tenho saudades de toda aquela simplicidade que se encontra em Macau...como ver gente a comer "de tronco nu".
Felizmente, faltam pouco para as férias.
Abraço
"Mas depois ia morrer de saudades de tudo isto".
ResponderEliminarEssa é a frase essencial, meu caro.
Há tempo e espaço para falar nos futebóis, nas politiquices e nos politiqueiros.
Para além disso, temos a sorte (eu também a tenho) de conhecer outras pessoas, outra cultura.
E não concordo nada com a tua esposa.
Os chineses são simpáticos connosco se formos simpáticos com eles.
Se aparecemos com ar de superioridade, ignoram-nos e, interiormente, mandam-nos à merda.
Nada de mais natural.
Se conseguirmos dizer meia dúzia de palvras em cantonense, ainda melhor.
Afinal, nós também não gostamos de ouvir pessoas de outras nacionalidades a falar português?
Quando aqui cheguei, há quase 15 anos, alguém que já cá estava há muitos anos disse-me - "se vens para Macau à espera de transportar Lisboa, ou Coimbra, para Macau, e para 'ganhar umas massas', nem desfaças as malas. Se vens de espírito aberto, vais gostar muito de aqui estar e vai ser muito enriquecedor para ti".
Não tinha dúvidas do acerto do conselho na altura, não as tenho hoje.
Um abraço
Muito bem dito, Pedro Coimbra. Por isso é que há quem adore viver em Macau e há pessoas que detestam. Estas o que queriam era que Macau fosse igual a Portugal para se sentirem bem. Eu, pelo contrário, sinto-me cá bem precisamente por ser diferente de Portugal.
ResponderEliminarExcelente texto.
ResponderEliminarAliás vai na linha daqueles posts sobre o encontro de culturas, o quotidiano de Macau e outros como a rubrica "um olhar sobre..", sempre com a mesma qualidade.
É isto que realmente torna este blog especial. O Leocardo tem uma invulgar capacidade de olhar para Macau, para a sua cultura e as suas gentes, para as suas especificidades e enfim para a vida do dia a dia desta cidade e depois escrever essas experiências de forma brilhante. Com um texto simples, genuino e extremamente cativante. Digo-lhe que se um dia escrevesse um livro sobre o tema, seria um dos primeiros a comprar!
Obrigado a todos, um grande abraço. Curiosamente quanto ao comentário do Pedro Pinto, que mais uma vez agradeço, tenho só pena que esta "invulgar capacidade de olhar para Macau" de que fala seja tantas vezes mal interpretada. É que quando se fala do coração nem sempre se consegue agradar a toda a gente. Bem, paciência...
ResponderEliminarÉ mesmo isto que o Pedro Pinto refere. A única crítica que se pode fazer a si, sem qualquer má intenção e espero que a interprete de forma construtiva, é que perde tempo em 4 ou 5 postas diárias sobre notícias triviais quando podia sair com uma posta deste calibre de dois em dois dias. Esta posta que escreveu é de facto brilhante. Mais a mais porque vivo uma realidade idêntica...e como o percebo.
ResponderEliminarEu que tantas vezes aqui vim elogiar, criticar e provocar tiro-lhe o chapéu desta vez. Parabéns e obrigado por partilhar esta sua visão, de forma brilhante.
Mas eu não obrigo as pessoas a lerem ou a gostarem de tudo. O meu amigo é livro de ler o que gosta e passar o resto à frente :)
ResponderEliminarObrigado e cumprimentos.
Bem....quanto a simpatias e adaptação o Pedro Coimbra é de facto um bom exemplo! Foi corrido com um pontapé nos fundilhos do cargo de Chefe de Divisão do IACM...como nao acredito que se reveja na sua incompetncia, deve ter sido por excesso de simpatia sina!
ResponderEliminarClaro que o Leocardo tem toda a razão, meu caro Pedro Coimbra!
O Pedro Coimbra, mesmo com um "pontapé nos fundilhos", que outra coisa não é que sinal dos tempos, continua a sentir-se adaptado e não perdeu a simpatia e a boa disposição por causa disso.
ResponderEliminarUm abraço ao Anónimo das 10:58.
Este foi dos melhores textos que já li no Bairro do Oriente. é por isto que continuo a vir aqui. Parabéns!!
ResponderEliminarBom, eu por acaso vim para Macau para ganhar umas massas, ha mais de vinte e dois anos.
ResponderEliminarNessa altura, eu e mais uns colegas fomos apelidados de mercenarios por aqueles que diziam que estavam ca por "amor a Macau".
Estes "amantes" de Macau tinham todos uma caracteristica: nao aprenderam uma palavra de chines.
Passados estes anos todos, eu acabei por aprender algum chines falado e escrito e casei-me com uma chinesa. As minhas filhas falam mandarim e portugues.
Isto tudo para dizer o que?
Primeiro, que a vida da muitas voltas, segundo, que nao interessa muito o que as pessoas dizem, mas sim o que elas fazem.
E finalmente, que a vida e a historia de uma terra se faz com a participacao de todos, amantes e mercenarios, locais e estrangeiros.
Sao estes os textos que nos fazem vir ao Bairro do Oriente.
ResponderEliminarAA
não percebo como que existem portugueses que estão em macau há tantos anos e não sabem falar nem um pouco de chines.se calhar pensam que os chineses é que deviam saber portugues.Antes de 1999 era assim que a maioria dos portugueses pensavam quando viviam em Macau.aqueles eram os tipicos mercenários tugas,uns tipos que so pensavam em ganhar o máximo de dinheiro possivel e depois mandar tudo a merda e voltar a Portugal com muito dinheiro.Ainda hoje vejo alguns deles em Lisboa a andarem de metro ou comboio quando em macau tinham motorista privado e tudo de borla.
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