sábado, 9 de janeiro de 2010

Os blogues dos outros (especial)


Gostava de reproduzir, com a devida vénia, um texto de Miguel Castelo-Branco, publicado no blogue Combustões, e que considero ser de grande interesse.

Clerk of Councils, ou seja, Secretários Gerais da Colónia, José Maria de Almada e Castro e seu irmão Leonardo de Almada e Castro ocuparam durante décadas a terceira posição na hierarquia administrativa de Hong Kong e foram decisivos para a moldagem institucional da mais importante colónia da coroa britânica no extremo-Oriente. Conselheiros de John Bowring, governador de Hong Kong e embaixador incumbido de negociar o primeiro "tratado desigual" com o Sião em 1859, mantiveram-se como influentes figuras e, depois, o clã Castro ocupou relevantes posições até vésperas da Segunda Guerra Mundial. Não se tratou de caso isolado. Já antes da ascensão dos Castro, outro português, Alexandre Grande-Pré, ocupara as funções de Secretário da Colónia nos conturbados anos 40, ou seja, imediatamente após a cedência de Hong Kong ao Reino Unido, no desfecho da Primeira Guerra do Ópio. Grande-Pré foi depois comandante geral da polícia.

Os britânicos, tal como acontecera em Penangue em finais do século XVIII e em Singapura no primeiro quartel do século XIX, tentaram compreender o funcionamento e aplicar o modelo português, tido por mais experiente e alicerçado num profundo conhecimento dos modos e práticas asiáticos.

Hong Kong fazia parte, em 1848, do "império-sombra" português na Ásia. Ali funcionavam três escolas católicas - uma para rapazes europeus, leccionando em português e inglês; outra para raparigas e outra para chineses - e o ensino aí praticado era considerado modelar, pois desenvolvido por "scholars" (1). Em finais do século XIX, entre 10.000 britânicos e estrangeiros vivendo na cidade, 1.263 eram portugueses; ou seja, 12% de elite da colónia, pois que a massa dos quase 200.000 chineses ocupava funções modestas e detinha acesso limitado à engrenagem do poder.

Não deixa de ser sintomático o facto de Portugal abrir o primeiro consulado em Hong Kong antes de quaisquer outras potências europeias presentes na Ásia e, também, o facto do Sião ter aberto consulado em Macau anos antes de nomear um representante em Hong Kong. No trabalho que realizo detecto outra curiosidade: a chegada ao Sião, nas décadas de 60, 70 e 80 de muitos portugueses de Macau, fez-se através de Hong Kong; ou seja, Hong Kong era utilizado como agente difusor da rede informal de poder que os portugueses possuíam há muito. Positivamente, os portugueses viviam dentro do aparelho britânico, dominavam-lhe as fragilidades e tiravam partido da força britânica para se candidatarem a concursos para lugares de conselheiros junto da corte siamesa.

A defesa de Hong Kong foi, também, desde os primeiros momentos da colonização britânica, entregue a portugueses. Ao criar-se o Corpo de Voluntários, em 1854 - sintomaticamente durante a governação de Bowring - com a incumbência de proteger a cidade e manter a ordem pública, o número de portugueses fardados e armados atingia 15% dos efectivos. Os Voluntários Portugueses mantiveram-se como força relevante do dispositivo militar da colónia até à invasão japonesa de Dezembro de 1941 e muitos pagaram com a vida a defesa da sua terra, caso muito similar ao dos luso-descendentes na Malaia Britânica (actual Malásia), que foram notados pela bravura que demonstraram ao longo dos anos de guerrilha anti-nipónica (1942-45). Igualmente em Xangai se constituiu um Corpo de Voluntários Portugueses, que executava tarefas de vigilância e manutenção da ordem dentro do perímetro da Concessão Internacional.

Para todos quantos cultivam o miserabilismo como princípio para a análise da presença recente portuguesa nesta paragens, estes curtos apontamentos surgem como uma provocação. O propósito não é, evidentemente, provocar, mas contrariar lugares-comuns e essa tremenda inibição que tem feito de nós e da nossa historiografia um caso perdido e digno de piedade no triunfalismo historiográfico que domina a visão anglo-saxónica. Há muito que fazer e investigar, mas este é, creio, o caminho certo.

(1) ENDACOTT, G.B. A history of Hong Kong. London: Oxford Press, 1964

Miguel Castelo-Branco, Combustões

4 comentários:

  1. Belo artigo e devia dar a origem a uma obra tipo "portugueses ao serviço do Império Britânico no Extremo Oriente" ou "redes portuguesas no tecido colonial inglês no Extremos Oriente"
    Raul

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  2. Muito bom artigo. Fez bem em divulgar leocardo, faz bem ao ego nacional!

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  3. Obrigado caro Leocardo. Prometo mais e mais interessante para os próximos números da História Desconhecida.
    Abraço
    Miguel

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  4. Este artigo apenas confirma o que eu penso: o que me envergonha, como português, não é a história do meu país nem a dos meus antepassados; o que verdadeiramente me envergonha, como português, é o portugalzinho da treta que hoje temos, cheio de mediocridade e de incompetência, e sem qualquer memória histórica.

    Ainda recentemente, aquando de uns artigos sobre os 10 anos da transição de Macau (no Expresso, salvo erro), perguntava um comentador "online" que interesse é que tinha uma reportagem sobre Macau, quando havia tantos problemas internos, como o desemprego, por resolver? Isto é que é o verdadeiro miserabilismo, pejado de um desinteresse pela história que é anormal num país que foi um grande império. E é isso que Portugal é hoje: um pardieiro de bestas analfabrutas.

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