quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Liberdade "a mais"


A propósito da crise da banca, parece que a PJ está a investigar os rumores que apontavam para a falência de algumas instituições bancárias do território, que há duas semanas originaram a corrida aos bancos por parte de milhares de depositantes, receosos de perder as suas economias. As investigações parecem estar a correr bem, e foram já interrogados alguns participantes de um fórum em chinês da internet onde se suspeita que os rumores tenham começado. Alguns dos utilizadores desse mesmo fórum já se defenderam alegando que apenas comentaram sobre o que ouviram, e que não foram eles os autores desses rumores. No seu editorial de hoje, o jornal Ou Mun acha que alguns utilizadores da internet têm liberdade "a mais", e que os autores de notícias inflamatórias devem ser punidos.

Aí está um conceito muito em voga hoje em dia: a liberdade "a mais". Quando deviamos estar a discutir a liberdade ou a privação dela, estamos a medi-la. Neste caso particular trata-se de encontrar um ou mais bodes expiatórios para aquilo que toda a gente sabe: a banca meteu a pata na poça, a ambição desmedida e a ganância levaram à falência do sistema, e há quem defenda que Marx tinha razão quando dizia que "o capitalismo entregue a si mesmo devorar-se-á". Não sei se é preciso ir tão longe ao ponto de citar Marx, ou dar-lhe razão, mas a crise ainda agora está no seu início e prevê-se que seja diariamente matéria para a actualidade informativa num futuro próximo.

Acredito que sempre se disse que há liberdade "a mais". O conceito de liberdade é intrínseco à condição humana e à própria evolução da espécie. Hoje em dia temos liberdades e garantias que seriam impensáveis há algumas décadas, quanto mais há alguns séculos ou mesmo milhares de anos. Basta lembrar que a convenção de Genebra sobre os direitos fundamentais do Homem foi apenas assinada em 1949, não há duzentos ou trezentos anos. Antes disso seria perfeitamente legítimo alguém que tivesse dinheiro, poder e estatuto dirigir-se a um pobre peão e rebentar-lhe os miolos "porque lhe apetecia", sem que tivesse que responder pelos seus actos.

Existe uma corrente que defende que os países colonizadores deviam indemenizar os países colonizados por atrocidades que foram cometidas há 400 ou mais anos. Só podem estar a brincar. Alguma vez passou pela cabeça de Gengis Khan compensar quem quer que fosse cada vez que pilhava e incendiava uma aldeia, decepando homens e crianças e brutalizando mulheres? Será que alguém se lembrou de responsabilizar a Igreja Católica pelas atrocidades cometidas nos últimos 800 anos, e que por algumas das quais só muito recentemente pediu desculpa?

O meu pai dizia que os jovens de hoje não sabem utilizar a liberdade que têm. A liberdade conquistada por si e pelos da sua geração, entenda-se. As lutas da juventude de hoje parecem sempre "ridículas" quando comparadas com as do passado. Eu que o diga, que me custa compreender algumas das reivindicações dos estudantes de hoje em dia. Só que não vou ao ponto de considerar que têm mais ou menos valor. Simplesmente não me dizem nada, e eles um dia vão sentir o mesmo. E assim se vão sucedendo as gerações, cada vez menos preconceitos, e mais contradições. Os que estão com os pés para a cova dão lugar aos novos, e tudo se renova.

Mas há quem não pense assim. Alguns dos combatentes de outrora acomodam-se, vendem-se, entregam-se áquilo que chama "pragmatismo". São os ex-hippies, agora yuppies, que não passam de uns yuckies. Começam as frases com "No meu tempo...", como se o tempo deles fosse o melhor de sempre, em que existia realmente uma causa, e que o combate deles era realmente o que interessava, pois afinal foi o que fez deles aquilo que são hoje. E muitos nunca contribuíram de forma sólida para isso. Falam com nostalgia dos tempos que levavam porrada da bófia, em que eram torturados, perseguidos, e quem os ouve a falar dos problemas de hoje até pensa que têm saudades desses "gloriosos" tempos.

A internet tem sido encarada como "um problema". Está ao alcançe do cidadão médio, que se ergeu da pintura nos muros ou dos jornais clandestinos que ninguém lia, e entrou na era digital. Os blogues e os fórums, criações mais ou menos recentes, tornaram a internet numa ameaça. A maior parte da imprensa (que como se sabe não é independente em parte alguma) considera-os uma ameaça. Alguns articulistas e opinion-makers, alguns que o são por cunhas, amizade ou convite, arrancam os cabelos de raiva porque há "amadores" a dizer de sua justiça, e pior que isso, "anónimos". Alguns políticos socorrem-se de uma faixa da população ignorante e analfabruta a quem as novas tecnologias ainda assustam, mas que também votam, para acenar com a "ameaça" que a liberdade de expressão representa aos seus tacanhos valores. E pior que isso, há quem defenda que ninguém tem o direito de se expressar livremente, pois temos "profissionais" encarregados de resolver todos os nossos problemas. Esses são os piores.

Tive a sorte de durante a minha vida ter sido abençoado com o aparecimento da auto-estrada da informação. Lembro-me dos meus primeiros anos em Macau ter-me sentido como um verdadeiro alienado, ausente do mundo, no marasmo que só o evento da internet me veio tirar. Quero acreditar que os meus filhos pensem o mesmo de mim um dia, que me considerem "brega" e desactualizado, e é muito mau deles que esteja eu mais a par das novas tecnologias que eles. Quero ser um velho rezingão, desconfiado da juventude e do progresso. Quero planear a minha velhice calmamente e que um dia sirva de banquete aos vermes enquanto os meus descendetes tomam conta do mundo. Como é maravilhoso, o tempo que passa. E que haja sempre mais liberdade, e não...liberdade "a mais".

6 comentários:

  1. Leocardo,os acontecimentos das últimas semanas provam que Marx tinha toda a razão.

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  2. Caro Hugo,
    Marx deixou de ter razão em 1961 com a construção do Muro de Berlim.

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  3. Belíssimo texto. E Marx, como se vê, nunca teve razão.
    JS

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  4. Fora de tópico:
    Este post deixou-me a pensar na entrevista ao António Conceição Júnior, publicada ontem no Hoje Macau, e, sobretudo, ao respectivo editorial do estimado Carlos Morais José.
    A ligação que faço levanta a seguinte questão (e vou escrever a medo, não é que acredite em bruxas, mas que as há, há!):
    Que motivação terá alguém que, no mínimo, goste de pensar com a sua própria cabeça, para participar activamente numa sociedade que se queixa de "liberdade a mais"?

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  5. A liberdade nunca é de mais.

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  6. Isto ainda está pior que no Sudão! Parece-me que o Leocardo, numa parte do texto, se refere aos que sofreram na pele a ditadura de forma menos aceitável. É natural que essas pessoas valorizem esse tempos em que verdadeiramente, se lutou pela liberdade. Escolheu mal o exemplo para caricaturar as pessoas "No meu tempo...". Hoje a luta pela liberdade faz-se noutros campos de batalha, pelo menos nalguns países. Não quero acreditar que o Leocardo, nesses tempos em que se lutava pela Libertação de um povo, estivesse do outro lado da barricada. Aqui fica este meu protesto, apesar de perceber que o objectivo do texto, na sua globalidade, é outro. Cumprimentos!

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