quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008
Cargos públicos, dinheiros privados
Não sei se os leitores já receberam alguma vez em casa algum dos jovens da Direcção de Serviços de Estatística e Censos que faz regularmente a recolha de informações sobre os agregados familiares. Eu lembro-me bastante bem da visita da simpática menina dos DSEC, em Outubro de 2006, que entre as questões levantadas, uma prendia-se com os rendimentos singulares. "Quanto é que o senhor ganha?", uma pergunta que não se faz assim de ânimo leve. Não tive qualquer problema em responder, mas de que forma reagiram outros cidadãos, foi a pergunta que ficou por fazer. A maioria provavelmente respondeu sem hesitar, vendo nos jovens dos DSEC alguma figura de autoridade. Outros mais "espevitados" terão dado alguma luta, ou não responderam de todo.
Isto tudo para falar da mais recente matiné na Assembleia Legislativa. Os deputados Ng Kwok Cheong e Au Kam San, do Novo Macau Democrático, apresentaram um projecto de lei (!), que passava pela alteração da lei 11/2003 e pedia a declaração pública de rendimentos dos titulares de cargos políticos e trabalhadores da administração. Não sei qual a motivação dos deputados do NMD, se por acaso a democracia e os seus valores intrínsecos serão suficientes para os inebriar de prazer, ou se são apenas humanos e, como tal, amantes do vil metal. Mas a verdade é que mesmo antes de levar a proposta à votação no plenário, eles próprios apresentaram os seus rendimentos.
Mas que grande bota que tinham os restantes deputados para descalçar, agora. Entre o interesse público e a coragem política, que certamente caía bem no próprio eleitorado, ou a protecção da privacidade (chamemos-lhe assim), os digníssimos deputados optaram pela segunda, deixando tudo na mesma. Muito coçar de cocuruto se ouviu na AL. Não era para menos, pois afinal que imagem é esta que se passa para o povão? Políticos não querem declarar os rendimentos? Têm o quê a esconder, afinal? A presidente da AL, Susana Chao, começou por acalmar as hostes: "só porque votam contra não quer dizer que a população vá pensar que são corruptos, a população é justa". Pois sim.
A proposta foi, evidentemente, chumbada. Quatro votos a favor e quinze contra, com oito abstenções. Razões para votar contra não faltaram, aliás, esta é uma situação em que as desculpas são como as cerejas, e foi um nunca mais acabar de razões para chover no cortejo dos democratas. Tsui Wai Kwan diz que a proposta de alteração à lei não combate a corrupção, e é mesmo ilegal e injusta em alguns aspectos, que toda a gente tem direito ao bom nome e à privacidade, e de que os dados não estariam actualizados, uma vez que ele há deputados e empresários que têm as massas investidas, etc. etc.. Posto este estóico discurso, o sr. deputado absteve-se.
Leonel Alves votou ao lado dos restantes deputados eleitos de forma indirecta ou nomeados pelo Chefe do Executivo, como tem sido o seu timbre, e explicou-se. Caso os deputados e outros detentores de cargos públicos cometam ilegalidades, o problema resolve-se, como aconteceu com o caso Ao Man Long. "Macau é pequeno, e o risco é grande", disse Leonel Alves. Falou-se de "tentações" caso estes valores fossem divulgados: ele há quem possa pensar em raptar algum dos srs. deputados/empresários. Os raptores, como se sabe, inteiram-se dos valores das contas bancárias das vítimas antes de procederem ao rapto. É lógico...
Alguns momentos de humor mais tarde, pois rir é o melhor remédio, procedeu-se à votação. Dos quatro que votaram a favor encontram-se, além dos autores da proposta, José Pereira Coutinho e a deputada Kwan Tsui Hang. Foi curioso observar no entanto como a número 2 da UDT, Leong Iok Wa, se absteve, bem como os dois deputados dos "kai fong", Leong Heng Teng e Iong Weng Ian, sem que explicassem muito bem porquê. David Chow não apareceu e assim não precisou de se chatear. Concordo no entanto com uma das frases que foi dita ontem no plenário: "Macau não é a Alemanha ou o Japão". Pois não. Está muito longe desses países, sem dúvida, e não é só no que diz respeito ao tamanho.
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