sábado, 26 de outubro de 2013
Quem somos, realmente? Parte I: a cor do dinheiro
As aparências iludem, dizem. Nem tudo o que reluz é ouro, também se diz. A cavalo dado não se olha o dente, e a galinha da vizinha é mais gorda que a minha, quem tem telhados de vidro...bem, já chega. Há um sem número de provérbios, ditados e o camano para ilustrar que por muito espectacular que alguma coisa ou alguém sejam, às vezes acaba por ser uma bosta. É um conceito um tanto ou quanto fatalista, pois gostamos quando algo que tem bom aspecto seja igualmente delicioso. Entre uma maçã brilhando no seu vermelho-vivo, carnuda, rijinha e sumarenta e outra pequena, pálida e enrugada, escolhemos sempre a primeira, mesmo que nos tentem convencer que a outra é mais saborosa. E com as pessoas? É mais ou menos o mesmo, só que pior.
Um estudo recente revelou o que outros já nos tinham deixado saber: as pessoas confiam mais em quem tem boa aparência, e têm fortes reservas quanto às pessoas pouco atraentes. Bruxo. Por alguma razão os agentes de seguros têm aquela ar distinto, fato impecável, penteado esculpido, dentinho branco, irradiando charme e simpatia. Tal como a dioneia, a planta insectívora, atrai as suas vítimas com a sua cor viva e o seu perfume e de repente devora-a com um rápido fechar de lóbulos, o agente de seguros vende qualquer coisa a quem se deixar levar na sua cantiga. Olhamos para ele e pensamos: "um tipo com este aspecto não me pode estar a enganar". Já o Corcunda de Nôtre-Dame, por exemplo, podia oferecer um plano dental completamente gratuito a um comedor de vidros, mas ninguém se aproxima dele - com aquele aspecto só pode ser tarado e louco. Se descobrisse a cura para o cancro e saísse à rua acenando com a fórmula e anunciando a boa nova, chamavam a polícia. Ou o hospício.
Quem é bonito safa-se melhor do quem é feio, e apesar da sociedade ter evoluído até a um ponto em que a especialização ou o talento são características só por si suficientes para atingir o sucesso, ter uma carinha laroca e um corpinho jeitoso ainda ajuda bastante. Um empresário que tenha que decidir por contratar uma secretária bimba, burra, que não sabe a ordem das letras do alfabeto, mas com um belo par de tetas e uma cara sôfrega de quem trepa pelas paredes quando vai ao castigo, ou um trambolho de metro e meio, gorda, semi-careca e com uma verruga na ponta do nariz, mas que fala nove línguas e dactilografa 200 palavras por minuto sem um erro, opta por qual? Se a empresa for só dele e não tiver que prestar contas a ninguém, contrata a primeira para "assistente pessoal", e a segunda para fazer todo o trabalho.
Um tipo que seja bem parecido e tenha um bom paleio safa-se quase sempre, a não ser que o meio onde está inserido não o permita. Se Brad Pitt tivesse nascido nas favelas de Calcutá, provavelmente nunca tinhamos ouvido falar dele, e se tivesse sobrevivido à cólera e à dengue, estaria sem braços e sem pernas a pedir esmola na rua, com uma malga pendurada na boca. Mas e se for um tipo todo pintarolas que até parece que saíu de um anúncio da Gillete, mas não tem cheta? Ajudava se tivesse um carrinho, pelo menos, e já agora de grande cilindrada, ou uma profissão liberal que lhe permitisse passar mais tempo com a moça, e se o salário desse para ela não precisar de trabalhar, tanto melhor. E se tiver todas estas coisas mas for feio de meter dó? Aqui entra o lado materialista do problema.
Os ricos não precisam de ser bonitos para nada. Podem ser a escultura de um ogre: tronco com a forma de um barril, dentes apodrecidos, peles flácidas, pés cheirando a queijo da serra e um catarro que os faz cuspir de cinco em cinco minutos, que há sempre uma mulher jovem, bonita e limpinha que encontre nele "algo de especial": a conta bancária. Uma mulher jovem e atraente que se envolve romanticamente com um velho nojento alega sempre que ele "a compreende", e que "tem um bom coração". Mesmo que a realidade seja outra, e ele lhe bata, tenha um harém de odaliscas e seja mau como as cobras para tudo e todos. Quando conduz aponta para os cães e atropela-os, tapa o nariz quando entra um operário no mesmo elevador que ele, enxota os pobres que lhe pedem uma esmola, mas para ela "é um bom homem, que a trata bem". E diz isto enquanto molha com a língua o indicador com que conta as notas da mesada que ele lhe deu para "ela não chatear muito".
Imaginemos um caso da vida real tão semelhante a tantos outros que conhecemos: na fábrica de calçado, temos a menina Guidinha, uma moça de 19 anos, uma humilde empregada da cafetaria mas com umas ancas de fazer babar os anjinhos. A Guidinha gosta do Raúl, que trabalha na linha de montagem, um jovem de vinte e poucos, fato-macaco cobrindo o tronco nu, revelando os braços troncudos de quem passou os últimos três anos a puxar uma manivela pesada centenas de vezes por dia. Do outro lado está o Dr. Antunes, dono dessa fábrica e de outras, um empresário modelo que tem um defeito que compensa com uma grande virtude: é asqueroso, mas por outro lado é podre...de rico. A Guidinha e o Raúl gostam um do outro, e trocam olhares apaixonados enquanto ele almoça a sua sandes de mortadela, mas é o Dr. Antunes que enfia a língua fétida a saber a charuto na boquinha delicada da Guidinha. No fim do dia o Raúl volta à barraca e vai tomar um duche no quintal das traseiras com o cão, enquanto a Guidinha bebe champanhe no "Jacuzzi" do Dr. Antunes, antes de ir levar com os seus 100 quilos de banha em cima até que ele se canse e vá dormir e ressonar que nem um porco, com ela a seu lado, a pensar no Raúl, coitadito, que Deus lhe encontre uma mulher decente - sim, porque esta é uma putéfia, e já agora aproveita também para pedir a Deus que a perdoe.
Na cantina as outras funcionárias têm inveja da Guidinha, mas fingem ter pena, e perguntam-lhe: "olha lá, atão andas com o Dr. Antunes? Mas tu na gostas mazé do Raúli?". A pequena, perfeitamente ciente de que lhe estão a chamar de reles, desabafa "Pois...mas o Dr. Antunes ajuda-me...e à minha família...". Esta é a desculpa que a maior parte das mulheres encontra para justificar o facto de andarem com um tipo atroz, repugnante, com idade para ser seu pai ou até mesmo o seu avô: "ele ajuda a minha família", "ele pode-me ajudar nos estudos", "ele é generoso" e etcetera. Fala de "ajuda" como se fosse uma deficiente que precisa de depender do arrendamento do seu sexo para não morrer de fome, e quando diz que ele é "generoso" quer dizer realmente "desde que eu lhe abafe o palhacinho, ele arrota com o verdinho". Triste. Enquanto caminham juntos pela fábrica na direcção do escritório do Dr. Antunes para a costumeira rapidinha antes do almoço, cruzam-se com os operários que os cumprimentam sorrindo: "Bons olhos os vejam, Dr. Antunes e menina Guidinha", quando o que estão a pensar é "Sacana do velho, com aquela cara só mesmo a pagar". Quando fazem uma reserva num restaurante de luxo o cartão da mesa diz "Dr. Antunes e convidado", quando o que lhes dava vontade de escrever era "Velho porco e uma rameira qualquer".
Ficamos fascinados com a natureza, de como alguns animais, mesmo que não racionais, estabelecem relações pautadas pelo sentido de unidade familiar e fidelidade, que chegam a defender com a própria vida, se necessário. Interessam-nos também os cães, os macacos ou os porcos, que comem o que encontram pela frente e não pensam duas vezes em fornicar a irmã, a mãe ou as filhas. É com estes que somos mais parecidos, vendo bem. Mas do mesmo jeito que o destino borra tudo de estrume, passa com um pano por cima da porcaria, que continua a cheirar mal fica com uma aparência menos repulsiva. Um dia o Dr. Antunes casa com a Guidinha, não porque goste dela mas está a ficar velho e precisa de alguém que lhe mude a fralda e lhe leve o bife à boca, e eventualmente têm filhos. Os pequenos têm o apelido do Dr. Antunes, e a cara chapada do Raúl. E porque não pode o pobre rapaz participar também da brincadeira?
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