domingo, 20 de outubro de 2013
Os piratas do carro preto
Chegamos a Domingo à noite (oohhhhh....), e acabou a brincadeira. Para terminar o fim-de-semana em estilo, nada como o artigo de quinta-feira do Hoje Macau. Tenham uma semana de trabalho produtiva (pois, pois) e muita saudinha.
A população de Macau está cada vez mais revoltada com os táxis. Quer dizer, há os que estão revoltados e expressam o seu descontentamento, e há os que comem e calam, que são a maioria, infelizmente. Assim como os restantes problemas que prejudicam directamente a sua qualidade de vida, como a especulação imobiliária ou a falta de um segundo hospital público, por exemplo, as gentes de Macau encolhem os ombros, e soltam um mui fatalista: ”O que é que eu posso fazer?”. Sozinho, nada, lógico, mas é para isto que elegemos, escolhemos, apontamos ou como no caso de Macau “oferecem-se” servidores públicos, que se encarregam de garantir que se cumprem as funções mais básicas para fazer uma cidade moderna funcionar. Da mesma forma que contamos com a água que nos sai da torneira, com a luz eléctrica quando ligamos o interruptor, do autocarro que pode chegar atrasado, mas chega, devíamos contar também com um serviço de táxis decente. É difícil de entender como é que se resgata uma companhia de autocarros falida sem pestanejar, mas hesita-se tanto na hora de pôr ordem nos táxis.
Quem tem à mão de semear uma forma de desabafar, faz isso mesmo: desabafar, o que não resolve nada mas pelo menos alivia um pouco da frustração. Recentemente tivemos um editorial do director deste jornal a servir-se da ironia para apelar às tríades que resolvam a anarquia que reina entre os taxistas, e há duas semanas na concorrência lemos um episódio que aconteceu com um dos colunistas, um senhor já com uma certa idade. Esse incidente em particular demonstra bem o carácter vampiresco de muitos dos taxistas do território. Quando descobriram que podiam cobrar o dobro, o triplo ou dez vezes mais por um serviço que por lei tem o preço estabelecido por um taxímetro, enlouqueceram. Afinal estes tipos do continente não se importam de pagar 200 patacas por uma “corrida” que normalmente ficaria por 30 ou 40. “Então deixa-me apanhar só estes gajos”, diz-lhes a lógica da batata. Os residentes? Que comprem um carro. Ou vão a pé, que faz bem à saúde.
Nem todos os taxistas são maus, egoístas, mercenários desprovidos de sentimentos que ignoram uma grávida a quem acabou de rebentar as águas e precisa urgentemente que a levem ao hospital para apanhar um “tailoque” com pinta de endinheirado que está à porta do casino disposto a pagar um pintor só para ir até à sauna do outro lado da rua. Tenho dois taxistas na família, e são gente honesta, que normalmente apanham qualquer um que lhes faça sinal, cobram a tarifa que o taxímetro marca, e preferem ficar em casa quando há tufão. Tudo depende de factores como o dia, a hora ou o local onde nos encontramos. Apanhar um táxi no centro num Sábado à noite ou em dias feriados é como procurar uma agulha no palheiro, e nesse caso entra ainda o factor sorte. E convém desconfiar; encontrar facilmente um táxi nestas circunstâncias pode implicar uma “proposta indecente” da parte do motorista, que só aceita levar o passageiro ao seu destino mediante um preço muito acima do normal, e até do razoável.
Há cerca de dois anos conheci quatro turistas brasileiros, dois casais, que encontrei uma noite no meio do Largo do Senado por acaso, com um ar perdido. Ofereci-me para ajudá-los, e perguntaram-me o caminho para as Ruínas de S. Paulo. Perante um pedido tão simples, ofereci-me para lhes fazer de cicerone, e afinal eram apenas cinco ou dez minutos a pé de onde nos encontrávamos. Pelo caminho contaram-me que trabalhavam numa empresa multinacional em Guangzhou, e que esta era a primeira vez que vinham a Macau. Antes de chegarmos ao maior símbolo de Macau, perguntaram-me como se ia dali para a fronteira das Portas do Cerco, e “se era muito longe”. Quis saber com que urgência precisavam de chegar a esse local, e disseram-me que iam passar a noite em Zhuhai, e tinham até hotel marcado. Era Sábado, quase onze da noite, e a fronteira fechava em pouco mais de um hora. A única solução era encontrar um táxi.
O agradável passeio nocturno até S. Paulo tornou-se uma corrida contra o tempo. Chegados às ruínas da igreja, tiraram algumas fotografias, e não demoraram mais de dois minutos. Nem se aproximaram da escadaria. A busca desesperada por um táxi levou-nos até ao antigo Hotel Lisboa, onde finalmente avistamos um carro preto encostado perto da entrada principal, motorista no interior, luz vermelha tapada com o cartão de “fora de serviço”. Perguntei ao taxista se podia levar aquelas pessoas até às Portas do Cerco, deixando bem claro desde o início o carácter de urgência. Fez um ar de nojo, bufou, fez caretas como se tivesse a sofrer de prisão de ventre, e disse ser “impossível” satisfazer o meu pedido. Parecia que lhe tinha pedido para me levar à Somália, ou para um bairro onde decorria naquele momento um apocalipse zombie. Insisti, dizendo-lhe que os turistas tinham meia-hora para atravessar a fronteira, e abanou a mão direita, como quem diz “Portas do Cerco nunca! Antes a morte que tal sorte”. Uma das senhoras brasileiras avançou e ofereceu-lhe 150 patacas, e subitamente as Portas do Cerco passaram de teatro de guerra ao sítio mais normal do mundo. “No problem”, entrem lá que se vai fazendo tarde.
Durante a breve despedida os brasileiros deixaram-me saber que na China “também é assim”; se a situação requer que se negoceie, não há outra escolha. No caso deles, era pagar 150 por uma viagem que custaria 30 em circunstâncias normais, ou passar a noite ao relento em Macau até que a fronteira reabrisse, mais de sete horas depois. Agora pergunto eu: tem mesmo que ser assim? Não é possível encontrar um táxi para atender a uma situação urgente sem se sujeitar à roubalheira? E quem não tiver 100 ou 200 patacas, gastou o dinheiro todo em Macau e precisa de regressar ao continente ou a Hong Kong com urgência? Será preciso morrer alguém para que se faça qualquer coisa? Desde quando é que os táxis se tornaram “carros particulares” ao serviço de quem paga mais, completamente indiferentes ao taxímetro que indica o preço justo por cada viagem? Se na China “é assim”, este é um exemplo que não devemos importar.
Ainda me lembro de quando cheguei a Macau, quando a bandeirada era sete patacas e o taxímetro pulava 90 avos depois dos primeiros não-sei-quantos metros. Era possível ir do Colégio D. Bosco à Praia Grande por menos de 10 patacas. Nos tempos de crise, como aquando da epidemia de SARS, bastava levantar a mão para tapar o rosto quando se espirrava para pararem dois táxis à nossa frente. Hoje se nos deitamos no meio da estrada eles passam-nos por cima. Será que é preciso outra crise para que os taxistas se lembrem da sua nobre missão, da sua função tão útil de dar uma “boleia” de vez em quando à malta que, como eu, não tem carro? Se isso vier a acontecer, e espero bem que não, ninguém vai ter pena deles.
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