segunda-feira, 14 de outubro de 2013
Luxo na miséria
É complicado falar da selecção nacional sem ser patrioticamente parcial. Todos gostamos da selecção, queremos ver a selecção ganhar, ficamos frustrados quando não ganha, procuramos justificações nas escolhas do técnico, no empenho dos jogadores, no árbitro, tudo menos numa coisa: no facto de sermos Portugal. Ainda esta manhã o programa “Trio de Ataque” da RTP esmiuçava o empate de sexta-feira contra Israel, com destaque para os comentários de Pinto da Costa, nada simpática com Paulo Bento, ao que se seguiu uma discussão sobre as qualidades do actual treinador, a desorientação de alguns jogadores-chave, sempre a piscar o olho ao clubismo.
As novas gerações nem imaginam a sorte que têm. Quem tem menos de 22 anos conseguiu perder momentos em que a nossa selecção cantava o fado do desgraçadinho. Quem começou a seguir a selecção depois de 1995 recorda-se de mais alegrias do que de tristezas; desde 1996 até hoje a selecção só falhou a qualificação para o mundial de 1998, e entre um torneio menos bom ou outro, chegou a três meias-finais, e até a uma final! Antes disso, se os mais velhos se recordam, era assim também, só que ao contrário. Em toda a história dos euros e campeonatos do mundo tivemos dois torneios memoráveis: o mundial de 66 e o Euro 84. Não acreditam? Vejam como são mimados, habituados ao do bom e do melhor.
As minhas memórias do Euro 84 são especiais. Tinha 9 anos, Portugal estava no campeonato europeu pela primeira vez, entre os oito melhores do velho continente, seja em que formato. Não dei muita importância ao assunto, até porque os primeiros jogos foram empates com a Alemanha Ocidental e Espanha. Mas subitamente uma vitória contra a Roménia coloca Portugal nas meias-finais, e contra a França, equipa do país anfitrião. “Ena pá, vai haver camarão cozido nesse dia lá em casa”, pensei. E foi no dia 23 de Junho de 1984 – vai para 30 anos – quando no Montijo arrancavam as festas de S. Pedro, que eu entendi o que era a selecção, quanto valia, o que significava para o povo. Quando o elegante Jordão (o meu primeiro jogador favorito, desde esse dia) marca o seu segundo golo, e deixa Portugal em vantagem durante o prolongamento, foi uma explosão de alegria, e acho que foi a primeira vez na minha vida que me senti comovido. Os últimos cinco minutos foram o triste fadinho do costume, com os gauleses a darem a volta ao resultado, e lá morremos na praia. Apaixonei-me pela selecção e por aquilo que representa: a unidade, a cumplicidade, a camaradagem de uma nação inteira. O drama contra a França foram o sintoma de que esta paixão ia ser atribulada.
E assim foi. Dois anos depois do Euro 84, estávamos no México 86, o primeiro mundial desde 1966, de boa memória para o meu pai quando tinha mais ou menos a minha idade naquele tempo, e pensei que este seria o “meu”, para contar aos meus descendentes. A forma heróica como fomos vencer na Alemanha durante a qualificação era suficiente para me fazer acreditar que ia ser um mundial memorável para Portugal. E foi, mas pelas piores razões. Uma vitória contra a Inglaterra animou ainda mais as hostes; os mais sonhadores já nos viam a erguer a taça do mundo. Seguiu-se a demonstração do nosso ladro negro, o da pequenez e do amadorismo. Greve de jogadores, incidentes diversos (conta-se que os jogadores passaram dinheiro para as mãos de indivíduo para lhes trazer lembranças dos Estados Unidos, e depois fugiu), lesão do guardião titular, derrota infeliz com a Polónia e derrota humilhante com Marrocos. Começou aqui o divórcio de muitos portugueses com a selecção.
Veio um processo disciplinar para os jogadores envolvidos na campanha mexicana, o tal “caso Saltillo”, e durante dois anos a selecção andou a competir com jogadores de equipas do meio da tabela do campeonato nacional. Falhámos o Euro 88, tivemos um empate em casa com Malta, e ficámos a milhas da Itália, vencedora do nosso grupo de qualificação. Já com a primeira linha, começou um longo período de contas de cabeça, e os anedóticos “se fulanos perderem, outranos no ganharem e nós vencermos por 15-0, qualificamo-nos”. Foi assim para os mundiais de 1990 e 1994, e para o Euro 92 pelo meio: ficar de fora na última jornada e sempre dependendo de terceiros. Em 1996 dá-se a primeira qualificação em dez anos, há uma recaída em 1998 e a partir daí Portugal tem praticamente lugar cativo nos grandes torneios.
O Euro 2000 tornou-nos uma referência, e Portugal passou a ser um nome que impunha respeito. O mundial de 2002 foi uma pedra na engrenagem, mas logo a seguir veio um europeu em casa e uma final – a primeira! – e só faltou mesmo ganhar. Foi por pouco. Em 2006 as meias-finais de um mundial, 40 anos depois dos épicos “magriços”, e depois disso há a assinalar o Euro do ano passado, onde batemos três selecções com títulos europeus no currículo, e só caímos nos penalties com a invencível Espanha. O nosso grau de exigência leva a que se exija pelo menos as meias-finais de um euro ou de um mundial, e menos que isso é considerado “uma desilusão”. Quem diria! Esta é a mesma selecção com que cresci, com que cheguei à maioridade? A sério? Quem diria...
Não considero que falar da selecção, apoiá-la e vibrar com os seus sucessos seja uma daquelas conversas sobre futebol tão banais que já enjoam. Em tempo de paz, e que assim permaneça, as selecções são tudo o que nos resta para saciar a sede de sangue. Os jogos internacionais são a medida para a bravura, a raça e o engenho de cada nação. Por isso é preciso deixar de lado as paixões clubísticas, e principalmente não as levar para a selecção. Quando a selecção portuguesa entra em campo, é Portugal que ali está, pronto a suar a camisola contra um opositor estrangeiro. Somos todos nós quem ali está. Deixem de ser broncos, e quando jogar a selecção, vamos vestir apenas a camisola das quinas.
viste o jogo do euro84 em directo na tv?
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