sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Negócios da China


Mas uma vez aqui fica o artigo de ontem no Hoje Macau, para quem ainda não leu.

A Rua dos Ervanários, situada aqui perto de casa, é uma das mais antigas e típicas de Macau, um dos pilares da identidade da cidade velha, não muito longe do centro histórico. Lá encontramos lojas de ofícios cada vez mais raros nos dias que correm. Desde lojas de quinquilharia, a latoarias ou papelarias e mobília chinesas, passando por lojas de selos e numismática, e até uma famosa loja de cocos conhecida por vender os “cocos da felicidade conjugal”, usados em casamentos, e que serve um gelado de coco famoso na região, e procurado por turistas de Hong Kong e da China continental. Foi com grande tristeza que constatei que pelo menos quatro lojas nesta rua encerraram recentemente. Foram completamente abandonadas. Ao ponto de já terem afixado um aviso de interrupção do fornecimento de energia por falta de pagamento. Falta pouco para que se comece a acumular lá a correspondência, o pó e o lixo, o abandono completo, aquilo que se pode esperar de um cenário pós-guerra nuclear.
Infelizmente vai sendo cada vez mais assim em Macau. Os negócios tradicionais não conseguem competir com negócios milionários ou com o crescente aumento das rendas para os espaços comerciais. Quando se aluga um espaço comercial perto do centro da cidade ou na Taipa nova por 50 mil patacas ou mais, não se pode pensar em fazer algo de criativo ou interessante. Precisa de ser algo lucrativo. Suponhamos que alguém quer abrir um café no centro da cidade. Com 50 mil – para ser simpático – de renda, mais o salário dos empregados e a despesa com os fornecedores, é quase preciso cobrar 200 patacas por uma bica para ter algum lucro. E além do mais, quem é que quer saber de bicas por estes lados, a não ser os “tugas” e um ou outro turista ocidental e acidental? Quem quer apostar em espaços comerciais onde venda qualquer coisa de diferente ou original, pode tirar o cavalinho da chuva. O que dá lucro é o que os turistas da China continental compram: jóias, relógios, roupas de marca ou aquelas souvenirs de Macau muito “foleirotas”, tipo carne seca, bolos de amêndoa ou a imitação plástica dos pastéis de nata, que alguém ousou chamar de “portuguese egg tarts”. Um insulto aos nossos pastéis de Belém, que digam o que disserem, são mil vezes melhores que aquela porcaria.
O que não falta mesmo em cada esquina são lojas de “chau min”. Esqueçam a cozinha ocidental ou a restante cozinha asiática, demasiado “estranha” para o gosto local, e para os turistas do continente, que no fundo são o combustível da nossa economia. O que dá mesmo dinheiro é abrir uma loja de massas chinesas, e aparentemente o mau cheiro, as panelas sujas e a falta de higiene são sinónimo de “bom sabor”. Eu que o diga, que cada vez que entro no escritório pelas nove da manhã os meus sentidos são assaltados por um misto de caril de lulas e massas com costeleta de porco. Um deleite para os indígenas, que ainda não atingiram o padrão ocidental de comer o pequeno-almoço em casa – uma opção muito mais saudável – em vez de optar por fazer “ta pao” em lojas, e ainda por cima para isso param o carro no meio da rua para ir buscar a merenda nas lojas da especialidade, originando uma orquestra de buzinas dos restantes motoristas que têm pressa para chegar ao trabalho. Sabem o que é um negócio que não falha em Macau de certeza? Caixas de esferovite, rectangulares e redondas, para comportar as massas, os mins e o diabo a sete. Isto se a renda não for muito cara, mas qualquer vão de escada povoado de ratos e baratas serve para vender massas, “chu pa pao” ou caixas de esferovite, passo o desabafo.
Provavelmente o leitor fica fascinado, como eu fico, cada vez que vai a Hong Kong e encontra diversidade de lojas que apresentam uma variedade de produtos que não encontramos em Macau. Mas esperem, não serão as rendas em Hong Kong muito mais caras que em Macau, mesmo para os espaços comerciais? Talvez seja porque a população da região vizinha tenha um gosto mais eclético, e não sofre do síndrome de invasão de turistas da China continental por dá cá aquela palha. Aqui são recebidos por empresários de olhos esgazeados, língua de fora e a esfregarem as mãos de contentes. Talvez por uma questão de educação, de cultura, de preservação da sua qualidade de vida. São tudo questões que importa reflectir. Que hipótese estamos a dar ao artesanato, à cultura, ao tal “entretenimento e lazer”, de que tanto se fala? Porque será que qualquer boa ideia é imediatamente aniquilada por causa da falta de interesse ou das rendas elevadas? Com rendas a 100 ou 200 mil patacas por mês em alguns espaços no centro de Macau, qualquer dia temos lojas de transplante de órgãos vivos – algo que “justifique” o investimento.
É tudo uma questão do que queremos para Macau no futuro; uma cidade onde os turistas da China continental, abençoados sejam os meninos que vêm aqui lavar o dinheirinho que depois se transforma em cheques para andarmos todos caladinhos, ditam as regras do comércio, ou uma cidade onde as pessoas pensam pela própria cabeça e investem em coisas originais? O cenário é assustador, mas qualquer dia a bolha rebenta. Depende tudo de nós, acho. Já tive mais esperança, e hoje vou esperando sentado.

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