quinta-feira, 19 de setembro de 2013
Aventuras na linha da frente
O mês de Setembro tem sido assaz desgastante em termos físicos e anímicos, devido aos meus compromissos profissionais. Tem sido mesmo o mês de trabalho mais intenso destes 20 anos de carreira como funcionário público. Quem me conhece pessoalmente ou por intermédio de terceiros sabe onde trabalho, mas não é isso que está em causa, pois continuo a realizar as minhas funções sem problemas e não me queixo do ambiente nem sequer dos meus superiores. O problema é que desde o dia 1 tenho trabalhado na tal “linha-da-frente”, no atendimento ao público, e sendo a minha repartição uma das mais concorridas da administração em termos do número de utentes, o volume de trabalho e a pressão têm sido enormes.
O próprio facto de estar no atendimento ao público e não dominar o cantonense falado e escrito é só por si um grande obstáculo, mas o meus conhecimentos linguísticos – obtidos pela prática, não pela formação – são suficientes, desde que o diálogo se cinja ao âmbito das minhas funções. Estou consciente dos meus limites, e não poucas vezes necessito do apoio de um colega para entender o pedido de um utente, ou para esclarecer alguma dúvida. Os meus conhecimentos de chinês escrito foram adquiridos pela prática. Devo conhecer cerca de 500 caracteres, ou pouco mais que isso, e a maior parte deles aprendi por tomar um contacto quase diário com eles. Há mesmo alguns que consigo identificar, escrevê-los no computador, mas desconheço o seu significado.
Mesmo que dominasse o idioma local falado e escrito, nem que conseguisse escrever poesia, interpretar os escritos de Confúcio melhor que ninguém, e produzir extensiva literatura em chinês clássico, existiria sempre um grande “stress”. Basicamente somos quatro ou cinco funcionários da linha da frente a atender entre 250 e 300 utentes por dia, e nem todos vão ali tratar do que têm para tratar, e menos de cinco minutos depois estão despachados e vão à sua vida. Muitos nem sabem o que querem, exactamente. Se já é complicado atender alguém não dominando a sua língua, torna-se quase impossível percebê-lo quando ele próprio desconhece por completo o que fazemos ali, e como podemos ajudá-lo. Nas horas de maior afluência de público, há a pressão de correr contra o contador da lista de espera, e o barulho chega a ser infernal. Como a contabilidade faz parte das nossas funções, é complicado estar concentrado a fazer contas quando nem nos conseguimos ouvir a pensar.
A reação do público quando se dirige ao balcão a meu cargo é inicialmente de surpresa. Devem-se contar pelos dedos de uma mão os balcões na administração de Macau onde é possível encontrar um português no atendimento. Macaenses há muitos, claro, mas portugueses de origem e com um elevado grau de pureza, como o azeite, deve ser muito raro. A minha colega do balcão do lado arrisca mesmo afirmar que devo ser o único. Enquanto processo os pedidos, os utentes olham para a placa com o meu nome, meio incrédulos, como quem se quer certificar se não sou na realidade algum macaense com uma acentuada predisposição genética para o lado ocidental, ou quem sabe se sou adoptado. Muitos acham uma curiosidade engraçada, especialmente quando me passam para a mão um papel escrito completamente em chinês e consigo realizar o pedido. Incomoda-me um pouco a atenção, que leva a que me sinta como algum animal raro em exibição no zoo, mas por outro lado fico feliz por conseguir ser útil. Do mal o menos.
Muitas são as vezes em que o público pensa que sou “o chefe”, especialmente nos dias em que durmo melhor e estou de barba feita. Quando me acerco do balcão onde algum utente mais nervoso vai vociferando e gesticulando energicamente, olha para mim e pergunta ao meu colega que o está a atender se “este é o chefe”. Se eu fosse, certamente que tinha um rol de quexinhas para me fazer. Há casos em que um utente mais agitado e agressivo fica mais inibido perante a minha presença, talvez temendo que eu tenha a autoridade para o meter dali para fora. Uma colega explicou-me que se trata de uma reação típica dos chineses, que evitam comportar-se de forma mais rude na presença de um estrangeiro. E de facto os meus colegas reconhecem vantagens na minha aparência estrangeira. Como preciso de escutar o cantonense com mais atenção, por vezes há um utente no balcão ao lado a falar alto, a berrar no telemóvel, a tagarelar ou na risota, e preciso de lhe pedir para fazer menos barulho. Os colegas dizem-me que “tenho sorte”, pois se fosse chinês, o tipo reclamava comigo por estar a mandá-lo calar-se.
Não é a primeira vez que fico na linha da frente, longe disso. Já tinha ficado com regularidade nos tempos da administração portuguesa, e mesmo depois disso. A última vez tinha sido há menos de um ano, mas depois das alterações que alargaram as funções do lugar de atendimento – essa tal ideia do “balcão multi-funcional” – é a primeira vez. A experiência tem sido cansativa, mas além de gratificante, pelo menos em parte, permite-me observar algumas coisas que vistas de fora são mais difíceis de perceber. Existe ainda o preconceito que os funcionários públicos so preguiçosos, gente medíocre que foi encaixada na administração através de uma cunha porque não sabe fazer mais nada, e que os funcionários do atendimento são carne para canhão, e que é um “dever” denunciá-los se não servirem o público de acordo com as suas expectativas. Para piorar as coisas, as directivas superiores são no sentido de dar razão ao público, que em muitos casos é malcriado, agressivo, bruto e ignorante, e o funcionário ainda acaba por lhe ter de pedir desculpa, mesmo que esteja com a razão do seu lado.
No final deste mês vou regressar às funções da rectaguarda, e não sei quando vou voltar ao atendimento, mas aprendi muito, e tirei conclusões muito importantes: aquilo dá muito trabalho, e é preciso ter paciência de santo. Respeitem a malta da linha da frente, meus amigos. Mesmo que a burocracia vos aborreça ou os trâmites a cumprir sejam um incómodo, para vocês são cinco ou dez minutos em que aturam a malta que vos atende. Para eles são dias inteiros a fio a aguentar gente burra, sem educação, mal-cheirosa, que berra no telemóvel e cospe quando fala. São verdadeiros heróis estes rapazes e raparigas, não de capa e espada, mas de caneta e agrafador. E não digam que são eles que vos atendem mal, pois em 99% dos casos são mais generosos do que deviam. Façam um esforço para não descarregarem neles as vossas frustrações e males de fígado. Valeu?
São posts destes, genuinos, a contar experiencias pessoais e profissionais do dia a dia dum português nesta pequena cidade no Extremo Oriente que me levam a visitar este blog quase diariamente.
ResponderEliminarAdorava conhecer e partilhar mais histórias semelhantes da vida dos portugueses em Macau depois da transição. É pena que a nossa comunidade seja tão inibida e fechada, e pouca gente goste de falar tão abertamente.
Adorei Leocardo!
Muito obrigado Joana. Pode sempre contar comigo para transmitir um pouco do sentimento da nossa comunidade em Macau.
ResponderEliminarCumprimentos.